8. Apresentação da concentração#
> Breve menção sobre a ligação com o capítulo anterior
1. Gerando assim diligência, repouse
a mente em absorção meditativa.
A pessoa com uma mente distraída
permanece entre as mandíbulas das aflições.
> Explicação das condições favoráveis à estabilidade meditativa
>> Sumário
2. Ao isolar corpo e mente, distrações
não surgem. Portanto, abandone
as coisas mundanas e descarte
pensamentos discursivos.
>> Explicação detalhada >>> Renúncia de coisas mundanas
>>>> Porque deve haver renúncia
3. Devido à paixão e à ânsia por posses e bens,
as coisas mundanas não são abandonadas.
Portanto, para deixar isso tudo para trás,
a pessoa instruída se conduz assim:
4. Tendo reconhecido que a aniquilação completa das aflições
se dá com a prática de vipashyana em união com shamata*,
primeiro se esforce em shamata, que é realizada com
um regozijo genuíno na ausência de apego a coisas mundanas.
* NT: A prática de vipashyana ("insight profundo") é abordada no capítulo 9, no contexto da visão Madhyamaka. Com shamata (“calmo descansar”), praticamos a estabilidade mental que permite a concentração na virtude, que é o tema deste capítulo.
>>>> Abrir mão do apego aos seres
5. Seres impermanentes se apegam
intensamente ao que é impermanente,
mas não avistarão a quem amam
mesmo depois de milhares de vidas futuras.
6. Deixar de vê-los mesmo temporariamente já traz
infelicidade: suas mentes não repousarão tranquilas.
E mesmo que os encontre, não haverá satisfação:
o apego será um tormento como antes.
7. O apego aos seres sencientes obscurece
completamente a natureza perfeita,
destrói a desilusão com o samsara e,
no final, o sofrimento será uma agonia.
8. Pensando apenas neles, esta vida
transcorre sem sentido. O apego
a parentes e amizades mutáveis consegue
arruinar até o Dharma imutável.
9. Caso aja como as pessoas imaturas,
certamente irei para os reinos inferiores.
Já que nos levam para estados ruins,
para que se associar a elas?
10. Em um momento são amigas.
Em outro, se tornam inimigas.
Irritam-se com situações de alegria.
É difícil agradar pessoas ordinárias.
11. Sentem raiva com a menção de algo benéfico
para elas, e me fazem dar as costas ao que
ajuda a mim. Mas se eu não der ouvidos ao que
dizem, raivosas, irão para os reinos inferiores.
12. Invejam superiores e competem com seus pares.
São orgulhosas com inferiores e arrogantes
quando elogiadas. Criticadas, se enraivecem.
Quando é que pessoas infantis trazem benefício?
13. Ao se associar com elas, você elogia a si,
rebaixa os outros e fica conversando sobre
coisas como os “prazeres do samsara”.
Todo tipo de desvirtude certamente vai surgir.
14. Desse modo, associar-me com tais
pessoas traz somente desgraça.
Elas não me beneficiam,
assim como eu não as beneficio.
15. Fique bem longe de pessoas imaturas.
Mas, ao encontrá-las, sendo respeitoso e gentil,
não se familiarize demais. Comporte-se
adequadamente conforme o bom senso.
16. Do mesmo modo que uma abelha pega o mel,
vou usar apenas o necessário para o Dharma.
Não terei muita intimidade com ninguém,
como se todas fossem novas amizades.
>>>> Abandonar o apego ao ganho mundano
17. “Tenho muitos bens e sou respeitada.
Muitos gostam de mim.”
Caso se agarre a tal orgulho,
após a morte surgirá o terror.
18. Isso porque quaisquer que sejam
os desejos de uma mente completamente
iludida, eles se multiplicam por mil
para então surgirem como sofrimento.*
* Isso se aplica mais a renunciantes, cujos objetos do desejo implicam não apenas quebras de conduta, mas também negatividades como apropriação indevida dos bens da comunidade espiritual.
19. Portanto, a pessoa instruída não alimenta desejos.
É do desejo que surge o terror. Todos eles
serão naturalmente deixados de lado, então
com firmeza entenda isso de uma vez por todas.
20. Mesmo que acabe tendo
muitas riquezas, fama e elogios,
é incerto onde essa acumulação
de bens e renome vai levar.
21. Como há outras pessoas que me condenam,
por que me alegro com elogios?
Como há outras que me elogiam,
por que me incomodo com a maledicência?
22. Os inúmeros anseios dos seres sencientes
nem os Vitoriosos conseguem satisfazer;
quem dirá uma pessoa ignóbil como eu.
Assim, vou abandonar pensamentos mundanos.
23. Elas depreciam quem tem pouco,
e criticam quem tem bastante.
Que alegria poderia surgir com pessoas assim,
de relacionamento naturalmente problemático?
24. Já que elas não se satisfazem
se não ganharem nada,
nenhuma pessoa imatura é amiga.
Isso foi pronunciado pelos Tathagatas.
>>>> Após abandonar todos os apegos, desfrute das qualidades
excelentes de um retiro
25. Na floresta, animais selvagens e árvores
não se engajam em conversa negativa.
Quando ficarei junto de tal
agradável companhia?
26. Quando poderei ficar em cavernas,
templos abandonados ou sob
árvores, sem olhar para trás,
livre de apego?
27. Quando estarei em áreas
sem dono, naturalmente amplas,
com liberdade de conduta
e nenhuma fixação?
28. Quando terei apenas posses básicas
como a tigela de mendigar, vestes que
ninguém mais precisa, sem nenhum
temor por não esconder o corpo?
29. Quando, em campos de cadáveres,
verei a equivalência de meu corpo
e do esqueleto dos outros, como
algo sujeito à desintegração?
30. Meu próprio corpo
ficará como aqueles
cujo cheiro afasta
até os lobos.
31. Se este corpo que parece tão inteiro, e sua
carne e ossos, se desintegrarão, cada parte
caindo aos pedaços, não é preciso
mencionar os das outras pessoas amigas.
32. Ao nascer, chegamos sós. Ao morrer,
especialmente, seguimos sós. Se outra pessoa
não pode tomar parte de meu sofrimento,
como amigos que nos obstruem poderiam ajudar?
33. Assim como as pessoas na estrada se
apegam a uma hospedagem, as que entraram
no caminho da existência cíclica imaginam
permanência no abrigo de seu tipo de nascimento.
34. Enquanto quatro pessoas
não vierem carregar meu corpo
em meio a lamentos mundanos,
parto para a floresta.
35. Permanecendo sem amigos e, portanto,
sem ressentimentos, mantendo este corpo isolado,
considerando-o como se já estivesse morto: então,
quando morrer, não haverá sofrimento para ninguém.
36. Não haverá ninguém posicionado à minha frente,
ninguém para criar pesar e distúrbio
e, portanto, ninguém para me distrair
de práticas como a lembrança do Buda.
37. Então, vou permanecer solitariamente
em florestas de beleza agradável intensa,
deleite, poucas inconveniências
e que silenciam todas as distrações.
38. Descartarei todas outras ideias,
com apenas uma intenção:
vou me esforçar para domar a mente
e repousar em equilíbrio meditativo.
>>> Abrir mão de pensamentos distraídos >>>> Breve explicação
39. Neste mundo e no próximo, os desejos
vão gerar catástrofe. Aqui, eles trazem
assassinato, amarras e mutilação. Depois,
efetivam os infernos e os reinos inferiores.
>>>> Explicação detalhada >>>>> Abandonar anseio por amantes
>>>>>> Dificuldades que pessoas passam para casar
40. Muitas solicitações foram feitas
usando intermediários, sem evitar
negatividades e infâmia,
em nome da pessoa desejada.*
* Isso é uma referência aos costumes indianos envolvidos na busca por um casamento.
41. Você envolveu-se em riscos
ou esgotou suas posses,
em nome da pessoa com quem
a união traria um deleite formidável.
42. Mas ela em si nada mais é que um esqueleto.
Não tem independência e não é um eu. Desejando
intensamente, em completa fixação, por que você
não vai em direção ao fim do sofrimento, nirvana?
>>>>>> Reflexão sobre a natureza suja do corpo humano
43. O homem primeiro se esforça para que
a amada erga o rosto, mas envergonhada
ela olha para baixo. Seu rosto,
visto ou não antes, estava sempre coberto.*
* Costumes do tempo e local de Shantideva.
44. Este rosto que antes lhe afligia
agora está exposto. Ao ver
o que os abutres deixaram
aparente, por que você foge?
45. Você que protegeu esse rosto
escrupulosamente dos olhos alheios
com avareza, agora que ele está sendo
devorado, por que não o protege?
46. Ao ver esse amontoado de carne
que urubus e outros animais devoram,
você ofereceria guirlandas de flores, sândalo
e joias para aquilo que vira a refeição dos outros?
47. Ao ver exatamente esse esqueleto,
apesar de ele não se mover, você se apavora.
Por que então não temia quando ele se mexia,
animado por outra força, como um zumbi?
48. Quando esse corpo estava vestido, você o desejava.
Agora que está descoberto, por que não deseja mais?
“Não há mais necessidade disso.” Então
por que o abraçava quando coberto?
49. Já que tanto a umidade da boca quanto
o excremento vêm unicamente
da nutrição, por que você
desgosta de um mas gosta da outra?
50. Não obtendo conforto de um travesseiro
de algodão suave ao toque, pessoas cheias de desejo
se confundem sobre a sujeira, e dizem
que o corpo não exala mau cheiro.
51. Apesar de o algodão ser macio ao toque,
pessoas lascivas, confusas e rebaixadas
dizem que não é possível copular
com isso, assim enraivecendo-se.
52. Caso não tenha desejo pela sujeira,
por que abraça em seu colo uma
estrutura óssea entrelaçada por tendões
e revestida com uma camada de carne?
53. Você mesmo está repleto de sujeira e,
além de chafurdar nisso constantemente,
anseia e deseja a impureza
de outros sacos de imundície.
54. “É essa carne que me dá prazer”.
Se quer tocar e olhá-la,
por que você não deseja
a carne que não tem mente?
55. A mente que você deseja
não pode ser tocada ou observada.
Se pudesse, não seria mente.
Para que serve então essa inútil união?
56. Não compreender a natureza impura do corpo
de outra pessoa não é muito surpreendente.
Surpreendente é não reconhecer
a natureza impura do próprio corpo.
57. Por que você deixa de lado um lótus se abrindo
em flor sob os raios do sol sem nuvens,
para sua mente fixada em impurezas
se apegar a uma gaiola de sujeira?
58. Se você não deseja tocar algo
sujo com excremento,
por que deseja tocar o corpo,
que é a origem dessa sujeira?
59. Se você não deseja a impureza,
por que abraça outra pessoa em seu colo?
Ela surgiu de algo impuro:
as sementes que deram origem a ela.
60. Você não anseia pelos pequeninos
vermes sujos nascidos da podridão,
no entanto deseja um corpo imundo,
que surge de impurezas.
61. Além de não repudiar sua própria
sujeira, ansiando a impureza
de um saco de imundície,
você deseja outra pessoa.
62. Substâncias confortantes como cânfora,
ou úteis como arroz cozido e vegetais —
coloque na boca e depois cuspa.
Essa sujeira conspurca até a terra.
63. Apesar de serem óbvias essas impurezas,
caso haja hesitação, observe os corpos
de outras pessoas abandonados
nos campos de cadáveres.
64. Sabendo que, ao tirar a pele
do corpo, haverá grande terror,
como é que você ainda
se deleita exatamente com isso?
65. O perfume aplicado no corpo não é nada
além de sândalo ou outras fragrâncias.
Por que se apegar à algo com
o cheiro de uma outra coisa?
66. Se isso possui um mau cheiro natural,
não seria melhor não ter desejo por ele?
Por que pessoas mundanas, inutilmente
apegadas, precisam perfumar o corpo?
67. Já que este perfume é do sândalo,
que tipo de odor o corpo emite?
Por que sentir desejo por algo que
precisa do perfume de uma outra coisa?
68. Cabelos e unhas compridas,
dentes brancos que fedem com
uma camada de sujeira.
Natural e nu, o corpo é um horror.
69. Para que se esforçar para limpar e enfeitar
algo que é como uma arma que nos fere?
A loucura dessa luta alucinada pelo eu
deixa este mundo todo em convulsão.
70. Se ver meros esqueletos num campo
de cadáveres já causa repulsa,
você apreciaria cidades de cadáveres
preenchidas de esqueletos animados?
>>>>>> Contemplação sobre os danos causados pelo apego
71. Além do mais, um corpo que é
sujo assim não vem de graça.
Para realizar esse desejo, há exaustão e
as lacerações de reinos como o inferno.
72. Crianças não tem como ficarem ricas.
Já na idade adulta, como haveria felicidade?
A vida se resume a acumular bens.
Na velhice, de que serve a paixão?
73. Algumas pessoas ordinárias cheias de desejo,
exaustas de um longo dia de trabalho,
chegam em casa com o corpo em pedaços
para dormirem como cadáveres.
74. Outras viajam para longe aflitas,
sofrendo com a longa distância.
Anseiam pela família,
mas ficam anos sem vê-la.
75. Confusas sobre o que as ajuda,
imaginando o próprio bem, se vendem.
E não obtendo-o, se exaurem
inutilmente nas empresas dos outros.
76. Algumas pessoas vendem o corpo e,
sem independência, são exploradas por outras.
Mulheres tem que dar à luz sob árvores
ou no local onde estiverem.
77. Tolos enganados por seus desejos dizem
que precisam de um meio de vida e vão
para alguma batalha, temendo a morte;
ou se submetem à servidão, em busca de lucro.
78. Algumas pessoas ávidas de desejo têm seus
corpos cortados, outras são empaladas,
algumas são perfuradas por lanças
e outras acabam queimadas.
>>>>> Abrir mão do apego a riquezas e posses
79. Entenda a ruína infindável que as riquezas trazem
devido ao tormento de acumular, proteger e perder.
Para pessoas distraídas pela fixação em bens,
não há chance de liberação da agonia da existência.
80. Para pessoas gananciosas, falhas como
essas abundam. Já os ganhos são ínfimos,
como os tufos de grama que um boi tem
chance de abocanhar ao puxar a carroça.
81. Em nome de míseros ganhos, banais
como o desses bois, estas excelentes
liberdades e vantagens, tão difíceis de obter,
terminam destruídas pela tirania do karma.
82. Com a milionésima parte desses esforços
árduos contínuos em nome de ninharias —
desejos que certamente serão desfeitos
e que nos lançam em reinos como o inferno —
83. a própria budeidade seria realizada.
Mas seres cheios de desejo, no lugar
da conduta dos budas, têm muito
sofrimento e nenhum despertar.
84. Considerando o sofrimento de reinos
inferiores como o inferno, não há arma,
veneno, fogo, abismo ou inimigo
que se compare aos desejos.
>>>>> Contemplação sobre a excelência de um retiro
85. Ao se desencantar assim com
os desejos, regozije com o retiro
em florestas serenas, onde não
há conflito e aflições.
86. Em agradáveis abrigos com amplas pedras planas,
sob o frescor do sândalo dos raios lunares, pessoas
afortunadas passeiam meditando no benefício dos seres,
entre a floresta silenciosa e pacífica tremulando na brisa.
87. Em casas abandonadas, sob árvores ou em cavernas,
você permanece o quanto quiser. Deixando de lado
a agonia de manter e proteger bens, você age
despreocupadamente, sem depender de nada.
88. Poder agir de modo independente e sem fixações,
sem amarras com ninguém, com o prazer
do contentamento: mesmo entre pessoas
poderosas isso é difícil de encontrar.
> Concentração meditativa na mente do despertar
>> Breve explicação sobre a ligação com os versos anteriores
89. Tendo contemplado essas e
outras qualidades de um retiro,
pacifique todos os pensamentos
e medite na mente do despertar.
>> Explicação detalhada sobre a prática da concentração na mente
do despertar >>> Igualdade entre eu e outras pessoas
>>>> Breve explicação
90. Primeiro, medite com vigor na igualdade
entre eu e outras pessoas. Já que ambas
passamos por conforto e sofrimento,
protegerei a todas como sendo eu.
>>>> Explicação detalhada >>>>> Como meditar na igualdade
91. Apesar dos diversos tipos de membros, como as mãos,
o corpo que precisamos proteger inteiro é um. Desse mesmo
modo, os diferentes seres em suas alegrias e tristezas
são todos como eu: nos equivalemos ao desejarmos bem-estar.
92. Meu próprio sofrimento não afeta
o corpo dos outros, mas para mim,
devido à fixação no eu,
ele é insuportável.
93. Do mesmo modo, o sofrimento dos outros
não recai sobre mim, mas para mim,
por considerá-los como eu mesmo,
ele é difícil de suportar.
94. Vou dissipar o sofrimento de outros seres
porque é sofrimento, como o meu.
Vou ajudar os outros porque
são seres sencientes, como eu.
95. Se eu e outros seres somos similares
desejando bem-estar, qual é a diferença
entre nós? Por que eu deveria
esforçar-me apenas pelo meu bem?
96. Se eu e outros seres somos similares
não desejando sofrimento, qual é a diferença
entre nós? Por que eu deveria
proteger a mim e não os outros?
97. Caso eu não os proteja porque seu
sofrimento não me prejudica, então
para que me proteger de sofrimentos
futuros, já que eles não me afetam?
98. “Mas eu terei que experimentá-los.”
Esse pensamento é um engano.
Se alguém morre aqui e há um
nascimento ali, aquele é um outro ser.*
* Não há um eu que perdure entre um nascimento e outro, há apenas um contínuo de experiências. Isso também é válido a cada momento. A ausência de um eu permanente é tratada detalhadamente no capítulo 9.
99. “A pessoa que sente dor é que
precisa se proteger.” Se for assim,
uma dor sentida no pé não é a da mão,
então para que uma proteger o outro?
100. “Sim, não tem sentido, mas
fazemos isso devido à fixação no eu.”
Então, devemos fazer o máximo para abandonar
o que não tem sentido para mim e outros seres.
101. Aquilo que é chamado de contínuo
ou agregados mentais é irreal como
uma guirlanda ou exército. Já que não há
alguém que tenha sofrimento, quem o possui?*
* Um sujeito das experiências não existe inerentemente nem como algo que perduraria em um contínuo de experiências, nem como um conjunto de aspectos mentais, assim como um guirlanda ou um exército não existem em si mesmos — são apenas nomes para um conjunto de partes.
102. Não há diferença: a ausência de um
possuidor do sofrimento vale para todos.
Sendo sofrimento, devo dissipá-lo,
para que serve demarcá-lo?
103. “Por que dissipar o sofrimento de todos?”
Não há contradição. Se for remover o meu,
vou remover o de todos. E se não remover
o sofrimento de todos, então o meu também não.
>>>>> Respostas para objeções à igualdade entre eu e outros seres
104. “A compaixão traz muito sofrimento,
então para que cultivá-la intensamente?”
Ao considerar a dor de todos os seres, como o sofrimento
da compaixão poderia ser mais intenso que isso?
105. Um único sofrimento por
compaixão elimina diversas agonias.
Então pessoas amorosas devem
cultivar isso para si e os outros.
106. Por isso, Supushpatchandra,
mesmo sabendo que o rei o mataria,
não aliviou o próprio sofrimento,
mas extinguiu o de muitas pessoas.*
* História contada no Sutra Rei do Samadhi, em que o monge Supushpatchandra ensina o Dharma, mesmo sabendo que seria condenado à morte por isso.
>>>>> Benefícios da prática
107. Aquelas que treinaram assim suas mentes
se deleitam ao pacificar o sofrimento alheio.
Elas entram no Inferno do Tormento Incessante
como cisnes chegando em um lago de lótus.
108. O oceano de alegria da liberação
dos seres sencientes não é
suficiente por si só? Para que serve
desejar apenas a própria liberação?
109. Então, apesar de beneficiar os outros,
não ficarei maravilhado de orgulho.
Minha única alegria é o bem alheio.
Não estou esperando colher o resultado disso.
>>>> Em resumo
110. Portanto, assim como
me protejo até da menor crítica,
terei a atitude compassiva
de proteger as outras.
>>> A troca entre eu e outro >>>> Breve explicação sobre o motivo
111. Através da habituação, passei a reconhecer
as gotas de sêmen e sangue
— que não têm realidade inerente —
de outras pessoas como sendo eu.*
* Poderia ser argumentado que não faz sentido considerar outras pessoas como sendo eu, mas Shantideva diz que é isso o que fazemos quando pensamos em nós mesmos como a união do sêmen e óvulo de outras pessoas.
112. Desse mesmo modo, por que não considero
o corpo de outras pessoas como sendo eu?
E não haveria também dificuldade em
considerar meu corpo como sendo dos outros.
113. Reconhecendo que possuo falhas,
enquanto os outros são oceanos de qualidades,
vou me familiarizar com o abandono da fixação
no eu e vou considerar mais as outras pessoas.
>>>> Explicação detalhada >>>>> Modo geral de praticar a troca entre eu e outra pessoa >>>>>> Tomar o lugar de outras com entusiasmo
114. Assim como aceitamos que as mãos
e outras partes são membros do corpo,
por que não aceitar que os seres
são membros do mundo vivo?
115. Assim como a habituação trouxe a ideia
de que sou este corpo sem eu, por que
— com o hábito — não surgiria a ideia
de que sou os outros seres sencientes?
116. Dessa maneira, ao beneficiar outros seres,
não ficarei maravilhado de orgulho,
assim como não espero uma recompensa
quando dou alimento para mim mesmo.
117. Portanto, assim como me
protejo até da menor crítica,
meditarei na mente compassiva
para proteger os seres.
118. É por isso que o protetor Avalokiteshvara*
abençoou seu nome, com grande
compaixão, para dissipar o terror
dos seres no samsara.
* O bodisatva abençoou seu nome rezando assim (Sutra da Vasta Exibição): “Possam todos os medos e violências, como ser queimado numa grande fogueira ou ser engolida pelas águas, serem completamente aniquilados com a mera lembrança de meu nome... Ao lembrar de meu nome três vezes, possa todo ser ter libertação do medo e angústia…”
NT: É nisso que se baseia também a recitação do mantra “om mani peme hum”, que é o nome-mantra de Avalokiteshvara/Tchenrezig.
119. Não dê as costas para as dificuldades.
Pelo poder de meditar assim,
você sentirá falta até das pessoas
cujo nome costumava gerar medo.
120. Quem quiser rapidamente proteger
a si e às outras pessoas, deve praticar
a troca entre eu e outro, adentrando
assim um mistério sagrado.
>>>>>> Livrar-se da autoimportância excessiva
121. Devido ao apego ao meu corpo, mesmo
pequenos incômodos causam medo.
Quem não consideraria inimigo
um corpo que gera assim pavor?
122. Desejando realizar as atividades que acabam
com males do corpo como fome e sede,
ficamos de tocaia e assassinamos
peixes, aves e animais selvagens.
123. Em nome de lucros ou honrarias,
algumas pessoas matam o pai ou mãe,
roubam os bens das Três Joias e, assim,
queimam no Inferno do Tormento Incessante.
124. Que pessoa instruída deseja, protege
e considera supremo este corpo?
Quem não vai considerá-lo
um inimigo e desprezá-lo?
>>>>>> Falhas de considerar-se superior e a excelência
de prezar as outras
125. “Se eu for generoso, desfrutarei de quê?”
Espíritos malignos têm tais pensamentos egoístas.
“Se ficar usufruindo, o que terei para doar?”
Essa mente benéfica com os outros é o Dharma divino.
126. Se você prejudicar os outros em nome do ego,
sofrerá tormentos em reinos como o inferno.
Se aceitar danos para o bem dos outros,
obterá tudo de melhor.
127. As pessoas que desejam supremacia para si
terminam estupidamente em reinos inferiores.
Já quem deseja isso para os outros seres
obtém honras nos reinos superiores.
128. Se explorar outros seres para seu próprio bem,
você viverá em condições como a escravidão.
Se explorar a si para o bem alheio,
experimentará estados como a liderança.
129. Todo conforto que há no mundo
surge de aspirar pelo bem alheio.
Todo sofrimento que há no mundo
surge de desejar o bem só para si.
130. É preciso ficar explicando muito?
Seres imaturos ficam buscando o próprio bem.
Já os sábios agem pelo bem alheio.
Veja o que diferencia esses dois.
131. Se você não trocar seu próprio
bem-estar pelo sofrimento alheio,
a budeidade em si não será realizada,
e nem mesmo o conforto no samsara.
132. Não é preciso nem falar de vidas futuras:
empregados não realizam as tarefas,
chefes não pagam os salários — até os
objetivos desta vida não são realizados.
133. Descartando completamente causas excelentes
de alegria nesta e em outras vidas, pessoas tolas
ainda criam sofrimento para os outros
e terminam colhendo sofrimento insuportável.
>>>>>> A prática da troca: porque isso é necessário
134. Toda violência que existe
no mundo, e todo terror e sofrimento,
surgem da fixação no eu. O que farei
com esse grande demônio?
135. Sem descartar completamente o ego
é impossível abandonar o sofrimento,
assim como, sem descartar o fogo,
não há como evitar queimaduras.
136. Portanto, visando pacificar os danos para mim
e o sofrimento para os outros seres,
vou doar-me aos outros, considerando-os
como sendo eu mesma.
137. Ó mente, entenda bem isso:
“Eu pertenço aos outros.”
Agora, além do bem-estar dos seres
sencientes, não pense em mais nada.
138. É inapropriado usar faculdades como a visão,
agora que pertencem aos outros, para fins egoístas.
É inapropriado fazer algo contra eles, usando
as faculdades que são para o bem deles.
139. Então, os seres sencientes
serão mais importantes. Qualquer coisa
que meu corpo tenha, vou tomar
e empregar para o benefício alheio.
>>>>> Praticar a troca com antídotos específicos
>>>>>> Explicação breve
140. Assuma a condição de alguém inferior
ou outra pessoa, como sendo você mesmo.
Sem nenhum outro pensamento, familiarize-se
com a inveja, rivalidade e arrogância dela.
>>>>>> Explicação detalhada
>>>>>>> Familiarizar-se com a inveja sentida por alguém rebaixado
141. “Essa pessoa é respeitada, eu não.
Não ganho tanto quanto ela.
Enquanto ela é elogiada, falam mal de mim.
Ela tem conforto, e eu, sofrimento.”*
* É preciso entrar na pele dessa outra pessoa e dirigir esses pensamentos à sua “pessoa original”.
142. “Sou eu quem faz o trabalho, enquanto ela
permanece bem confortável. Ela é conhecida
como alguém importante no mundo, já alguém inferior
como eu, sou conhecido por não ter nada de bom.”
143. “Como eu poderia não ter nenhuma
qualidade? Na verdade, tenho muitas.
Em algumas áreas, ela é melhor.
Mas em outras, eu sou melhor.”
144. “Minha disciplina e visão decaíram devido
a minhas condições. Fiquei refém das aflições.
Mas essa pessoa deveria me ajudar como puder.
Eu suportaria voluntariamente as dores disso.”
145. “No entanto, ela não considera
me beneficiar. Por que ela me condena?
Todas essas qualidades dela,
para mim, de que servem?”
146. “Ela não tem compaixão pelos seres que estão
sob as cruéis mandíbulas dos reinos inferiores.
Orgulhosa de suas qualidades aparentes,
ela gostaria de competir até com os sábios.”
>>>>>>> Familiarizar-se com a rivalidade invejosa sentida por
alguém no mesmo nível
147. “Vendo pessoas que são meus pares,
para ter superioridade, vou garantir
meus bens e as honrarias, mesmo
que precise usar violência.”
148. “Com todos os meios possíveis, divulgarei
minhas qualidades por todo o mundo,
além de fazer com que ninguém saiba
das qualidades dessa pessoa rival.”
149. “Esconderei minhas falhas para
ser reverenciado, e ela, não.
Agora terei bens excelentes
e receberei favores, mas ela, não.”
150. “Quando ela fizer algo inapropriado,
olharei com deleite por muito tempo.
Farei dela um motivo de piada para todo
mundo, um objeto de desprezo constante.”
>>>>>>> Familiarizar-se com a arrogância do ponto de vista de uma
pessoa acima
151. “Estão dizendo que esse pobre coitado
quer competir comigo. Em termos de
instrução, sabedoria, aparência ou
família, como poderia haver comparação?”
152. “Ao escutar o que todos dizem
sobre essas qualidades minhas,
já desfruto inteiramente de uma
alegria cujo deleite causa até arrepios.”
153. “Se ele trabalhar para mim,
quaisquer bens que tenha,
com minha força, vou tomar, dando
apenas o mínimo para ele sobreviver.”
154. “Vou estragar seu conforto
e sempre prejudicá-lo.
Foi ele quem centenas de vezes
me prejudicou por todo samsara.”*
* Por que essa pessoa arrogante está sendo tão maldosa? Sob a pele dela, nós estamos dirigindo todo o ressentimento contra esse alvo, que também representa nosso ego — o responsável por todo nosso karma negativo.
Um dos objetivos de nos colocarmos na pele de alguém arrogante assim é reconhecer que também possuímos esses impulsos baixos e, desse modo, gerar empatia e compaixão por essas pessoas.
>>>>>> A conduta de quem pratica a troca entre eu e outro
>>>>>> Caminho gentil
155. Ó mente, desejando o próprio benefício,
você passou por incontáveis eras,
e tal sacrifício serviu apenas
para criar sofrimento.
156. Então, definitivamente engaje-se
em beneficiar os outros seres.
A instrução do Sábio é infalível.
No futuro, você verá que ela é sublime.
157. Caso você tivesse feito isso
no passado, uma ocasião como
a atual, que é diferente da glória
perfeita da budeidade, seria impossível.
158. Portanto, do mesmo modo como
você pensa ser as gotas de sêmen
e sangue de outras pessoas, familiarize-se
com os outros seres como sendo você.
159. Atuando como um agente dos
outros seres, tome qualquer
coisa sua que aparecer e
use-a para beneficiar os outros.
160. Sou feliz, outras pessoas não.
Sou nobre, outras são rebaixadas.
Recebo ajuda, outras não.
Como não invejo a mim mesmo?*
* Do ponto de vista que estou assumindo, o dos outros seres, a reação normal seria sentir inveja de uma pessoa tão privilegiada.
161. Separe-se de seu conforto,
abrace o desconforto alheio.
Quando se pegar questionando os outros,
examine suas próprias falhas.
162. Assuma até os erros alheios
como sendo falhas suas.
Admita abertamente até suas
menores faltas para muitas pessoas.
163. Proclame especialmente o renome
de outras pessoas, de forma a obscurecer
a sua própria fama. Dedique-se aos objetivos
alheios como se fosse o mais humilde serviçal.
164. Este ego tem falhas inerentes,
não vou elogiar suas virtudes temporárias.
Farei o possível para que ninguém
conheça suas qualidades.
165. Em resumo, todo dano que infligi
aos outros em nome do eu,
que isso recaia sobre mim,
para o bem dos seres sencientes.
166. Não se comporte de modo
insolente e arrogante. Controle-se,
de modo temeroso e modesto,
como alguém que acabou de casar.
167. “Faça isso! Permaneça desse
modo! Não se comporte assim!”
Controle-se dessa maneira.
Se houver desobediência, use punição.
>>>>>> Caminho severo >>>>>>> Sendo estrito com a mente
168. Tendo sido instruída,
ó mente, se não obedecer,
já que você é a base de todos
os erros, só lhe restará a punição.
169. O tempo em que me
prejudicava já passou. Agora
vejo onde quer que você vá.
Toda sua arrogância será destruída.
170. Jogue fora a ideia de agir para
o próprio benefício. Como você
já foi entregue para os outros seres,
ofereça sua força sem reclamar.
171. Ó mente, se eu for negligente e
não lhe entregar aos seres sencientes,
certamente você me entregará
aos guardiões do inferno.
172. Você já fez isso: me entregou
e sofri muito. Agora me lembro
dessas traições. Seus pensamentos
egoístas serão destruídos.
173. Desse modo, se deseja se satisfazer,
não fique buscando o próprio prazer.
Desse modo, se deseja se proteger,
constantemente busque proteger os outros.
>>>>>>> Sendo estrito com o corpo
174. Na mesma proporção em que
busco proteger todo este corpo,
com a mesma intensidade,
afundo me tornando hipersensível.
175. Se os desejos de quem cai
dessa maneira não poderiam
ser satisfeitos em toda esta terra,
quem poderia fazer isso?
176. Desejos insaciáveis geram
aflições e ideias degeneradas.
Já alguém que não depende de nada
possui excelência inesgotável.
177. Então, não faça os desejos
deste corpo se multiplicarem.
Não se fixar em nada como
sendo atraente é a melhor posse.
178. No final, isto se resumirá a cinzas inanimadas,
a serem carregadas por outra pessoa.
Por que me fixo nesta forma
insuportavelmente suja como sendo eu?
179. Viva ou morta, para que serve
esta máquina? Qual é a diferença
disto com coisas como barro? Que lástima!
Por que não me livro do orgulho?
180. Por ter ficado cultuando este corpo,
acumulei muito sofrimento inútil.
Para que servem os desejos e aversões
disto que é como um pedaço de pau?
181. Se eu ficar protegendo o corpo, ou se
abutres e outros animais o devorarem,
ele não tem apego ou aversão.
Então para que me fixar?
182. Se ele não se enraivece ao ser
depreciado, nem se deleita com elogios,
não tendo consciência disso,
por que me desgasto tanto?
183. “É porque outras pessoas, amigas,
apreciam esse corpo.” Mas já que
todas também apreciam o próprio corpo,
por que não prezo o delas?
184. Portanto, vou doar o corpo,
sem apego, para o benefício dos seres.
Ele tem muitas falhas, mas o empregarei
como uma ferramenta de trabalho.
>> Ultimato para praticar a concentração meditativa
185. Então, basta de atividades imaturas!
Vou seguir os passos dos sábios.
Lembrando dos conselhos sobre cuidado,
rechaçarei a sonolência e letargia.
186. Assim como agem bodisatvas de grande
compaixão, terei a dedicação apropriada.
Se não me esforçar dia e noite continuamente,
quando meu sofrimento terá fim?
187. Desse modo, para dissipar obscurecimentos,
vou tirar a mente dos caminhos
enganados, e continuamente repousarei
em meditação com o foco correto.
Este foi o “Capítulo 8 –Apresentação da concentração”, do texto Engajamento na Ação Bodisatva.