9. Perfeição da sabedoria#
> Breve exposição
1. Todos esses ramos dos ensinamentos
o Sábio proclamou para o cultivo da sabedoria.
Assim, quem quiser pacificar
os sofrimentos, dê nascimento à sabedoria.
> Explicação detalhada >> Sabedoria estabelecida pela visão
>>> Sumário das duas verdades >>>> Distinção entre as duas verdades
2. Relativo e absoluto, esses dois aspectos
são declarados como sendo as duas verdades.
O absoluto não está no domínio do intelecto,
porque o intelecto é ensinado como sendo relativo.
>>>> Sobre quem estabelece as duas verdades
3. Em relação a isso, no mundo,
há dois tipos de pessoas: iogues e leigos.
Entre eles, a visão de leigos é
neutralizada pelos iogues no mundo.
4. Entre iogues, conforme os tipos de entendimento*,
os superiores anulam os inferiores.
No entanto, há uma metáfora que iogues e leigos aceitam.**
Visando o resultado, não é preciso se fixar na análise.***
* As diferentes filosofias budistas se dividem, hierarquicamente, em: Vaibashika, Sautrantika, Tchitamatra e Madhyamaka, nessa ordem.
** A metáfora é a do sonho. Leigos reconhecem que é possível experimentar ilusões como sendo reais durante o sonho. Assim, é possível comunicar o insight ióguico para leigos: do mesmo modo como no sonho vivenciamos coisas que não existem, há também uma ilusão que nos impede de ver a realidade quando acordados.
*** Isso é uma resposta para a pergunta: “Se tudo é ilusão, como um sonho, para que praticar?” Apesar de serem ilusórias, não temos como nos libertar das aparências kármicas. Então, visando o resultado (budeidade para o benefício dos seres) praticamos sem nos fixarmos no resultado da análise ("tudo é ilusão").
>>> Refutar objeções às duas verdades >>>> Objeções sobre a base
(as duas verdades) >>>>> Refutar objeções de leigos
5. Quando leigos veem as coisas,
consideram-nas como definitivas,
não como uma ilusão.
É aí que iogues e leigos discordam.
>>>>> Refutar as objeções de shravakas*
* NT: as tradições referidas neste texto como Shravaka provavelmente perderam-se no tempo e não se referem a escolas budistas contemporâneas. O debate Shravakayana X Mahayana — presente neste capítulo — é uma relíquia histórica que, do ponto de vista prático, é útil apenas para identificarmos visões inferiores em nossa própria mente, sendo este seu objetivo final. O mesmo vale para menções a outras tradições espirituais e filosóficas.
6. “Formas e tudo mais são realidades óbvias.”
Mas isso não é uma cognição válida.
É tão falsa como a generalizada percepção de
impurezas como sendo puras.*
* Leigos costumam perceber o corpo humano como sendo puro e permanente, quando na verdade é impuro e impermanente.
7. Para poder se comunicar com leigos,
o Protetor ensinou sobre “coisas”.*
Mas elas não são nem mesmo momentâneas.**
“Isso é uma contradição, pois a
momentaneidade não pode ser relativa.”***
* Isso é uma resposta ao argumento dos shravakas de que as coisas teriam existência inerente, pois o Buda ensinou sobre a existência dos agregados, elementos e campos dos sentidos.
** Para shravakas, a qualidade momentânea dos fenômenos é um tipo de verdade absoluta. Shantideva está negando essa existência momentânea, pois isso ainda é uma sutil fixação na existência.
*** O argumento dos shravakas aqui é: "Se a momentaneidade não é absoluta, ela precisa ser relativa. Mas isso é impossível, pois relativo é algo que leigos percebem, e esse caráter momentâneo e impermanente das coisas não é percebido por leigos. Então há uma contradição."
8. Não há erro. A momentaneidade que iogues veem como
relativa, comparada com a visão de leigos, seria como ver
a realidade.* Se não fosse assim, a visão iogue sobre a impureza
do corpo seria anulada pela visão leiga, por exemplo.**
* Leigos veem fenômenos como sendo permanentes. Comparada a isso, a momentaneidade parece sim absoluta (mas não é).
** Poderia ser argumentado que não é apropriado trazer para a discussão uma visão ióguica inacessível para leigos. No entanto, se isso não for feito, as visões enganadas e iludidas de leigos prevaleceriam sobre a visão correta dos iogues. PTT
9. “Como oferendas feitas a um buda ilusório geram mérito?”*
Do mesmo modo que aconteceria se tudo fosse real.**
“Se seres sencientes são como ilusões,
como renascem depois da morte?”
* O oponente tenta refutar a ilusão de todos os fenômenos com o argumento: "Se tudo é uma ilusão, o Buda também é, então de onde vem o mérito?"
** Shantideva responde: "Shravakas fazem oferendas ao Buda e acumulam mérito. Nós também fazemos isso, a única diferença é que não consideramos tudo isso como sendo real, no nível absoluto."
10. Enquanto houver condições reunidas,
do mesmo modo, ilusões vão surgir.*
Como uma uma mera duração maior
daria mais realidade a seres sencientes?**
* Enquanto houver karma e aflições mentais, seres continuarão renascendo. Isso não depende de uma suposta existência inerente.
** Isso é uma resposta para o argumento: "Já que o samsara não têm começo nem fim, então seres duram muito tempo. Já ilusões não são assim. Então, as duas coisas não podem ser comparadas". Se a duração fosse a medida da realidade, então longas ilusões seriam mais reais do que fenômenos de curta duração.
11. “Como seres ilusórios não têm mente,
não haveria negatividade em matar ou agredir.”
Mas seres têm mentes ilusórias.
Assim, mérito ou negatividade surgem sim.
12. Encantamentos e coisas assim não têm o poder
de produzir uma mente ilusória.*
Ilusões surgem de diversas circunstâncias,
então as próprias ilusões são diversas.**
* Isso é uma resposta à pergunta: "Por que seres criados por ilusão mágica não têm mentes?" Após a resposta, vem um contra-argumento: "Se é possível criar seres ilusórios com mágica, então deve ser possível também criar mentes ilusórias." PTT
** O que dá surgimento aos fenômenos não é uma capacidade de criá-los, mas sim a reunião de diversas causas e condições, que resultam na originação dependente de diversos fenômenos.
13. Uma única causa que produz tudo
não existe de modo nenhum.
“Se, em absoluto, há nirvana,
que, relativamente, é samsara,
14. a budeidade se transforma em samsara.
Então para que praticar o caminho bodisatva?”
Se a continuidade das condições não for cortada,
as ilusões não serão neutralizadas.*
* Em absoluto, não há diferença entre seres sencientes e budas, ambos tendo uma natureza pura. No entanto, no nível relativo, há uma diferença: budas não vagam no samsara, pois as condições para isso (ignorância, fixação etc) não existem, ao contrário dos seres sencientes, que precisam praticar o caminho para reconhecer essa natureza. PTT
15. Já se as condições tiverem sua continuidade
cortada, nem mesmo a verdade relativa surge.
“Se nem a pessoa iludida existe,
O que é que enxerga a ilusão?”
>>>>> Refutar objeções da escola Mente Apenas* (Tchitamatra)
* NT: Os adeptos dessa visão dizem que tudo é a mente, e ela existe de fato. O ponto de debate é a suposta existência inerente da mente como um princípio absoluto. Já a afirmação sobre tudo ser a mente é aceita pela escola Madhyamaka. Vale sublinhar que a impossibilidade de a mente ver a si mesma — ponto repetido constantemente nesta seção — se aplica apenas para uma mente realmente existente. Se for vacuidade, essa impossibilidade não existe.
16. Devolvendo a questão, se a própria ilusão
não tem existência, o que há para perceber?
“Isso na verdade funciona de outro jeito:
essas manifestações são a própria mente.”
17. Se a própria mente é uma ilusão,
no momento da percepção, quem vê o quê?
O Protetor do Mundo proclamou:
“A mente não vê a si mesma”,
18. assim como a lâmina da espada
não corta a si mesma.
“Mas é como a lamparina,
que clareia a si perfeitamente."
19. Não há o que iluminar numa lamparina,
já que não há obscurecimento. “Mas isso
é diferente de algo assim, como um cristal.
É como a cor de algo azul que não depende de fora.”*
* Um cristal se torna azulado na proximidade de algo azul. Já algo azul por si só não depende de nada para ter essa cor. O ponto do argumento Mente Apenas é que o objeto a ser iluminado e o iluminador não são duas coisas diferentes: a chama da lamparina ilumina a si, sem dualidade, assim como uma safira é azul por si só. Desse mesmo modo seria essa suposta mente realmente existente: autoiluminadora.
20. “Assim, algumas coisas dependem
de fatores externos; já outras, não.”
Mas algo que não é azul não tem
como se tornar azul por si próprio.*
* Shantideva responde que o exemplo de algo azul como uma safira não se aplica, pois ela é azul devido a causas e condições (por exemplo, as cores de seus elementos constituintes). Ela não é azul por si mesma, não têm uma natureza azul.
21. “Eu digo que percebo a
lamparina se autoiluminando.”
Então diga o que é que percebe
a mente se autoiluminando?*
* A resposta do oponente para essa pergunta ("É a mente, percebendo a si mesma.") é logicamente inaceitável, pois é exatamente a capacidade de uma mente inerentemente existente ver a si mesma que está sendo debatida. Seria a mesma coisa que o seguinte diálogo: "Por que o céu é azul? Porque ele tem uma cor azul." Isso não é uma resposta, pois apenas repete a pergunta. PTT
Caso um outro tipo de consciência ou mente esteja envolvido nessa autopercepção, isso cria uma regressão infinita: “Quem é que percebe essa outra mente? E a próxima? E a próxima? ...”
22. Se a mente jamais é vista por ninguém,*
não há sentido em discutir se ela
autoilumina-se ou não. Seria como falar
da beleza da filha de uma pessoa estéril.
* Ela nem percebe a si mesma, nem é percebida por uma outra mente (como demonstrado na nota anterior).
23. “Se não há autoconsciência,
como a consciência lembra?”*
A memória vem da ligação com outras
experiências, como no exemplo do veneno do rato.**
* O argumento Mente Apenas é: "Se não há uma consciência que percebe a si mesma, a lembrança da consciência experimentando algo seria impossível, anulando assim a função da memória."
** Quando lembramos de algo, isso não acontece devido a uma suposta autoconsciência relembrando uma autoconsciência anterior, mas sim por causa de condições no presente, que se interligam com memórias e outros fatores, criando uma nova experiência. Nessa história (contada pelo Buda em um sutra), uma pessoa é mordida por um rato, sem saber que há um veneno que fará efeito depois. Quando os sintomas finalmente aparecem, então a pessoa lembra que foi mordida pelo rato. Esse pensamento/lembrança é uma nova experiência, não é uma autoconsciência, assim como toda memória.
24. “Em certas condições, ver a mente
é possível. Então a própria mente se ilumina.”*
Aplicando a medicina para o siddhi dos olhos, é possível
enxergar vasos preciosos. Mas o próprio remédio não é visto.**
* Meditadores realizados conseguem ver o conteúdo da mente de outras pessoas, incluindo memórias dos outros e das próprias vidas passadas. Se isso é possível, a mente também poderia ver a si mesma. PTT
** Isso não demonstra que a mente veja a si mesma. É como no exemplo da substância mágica que permite que sejam vistos objetos preciosos enterrados no solo. Apesar de os olhos verem essas joias, o remédio em si não é visto, nem os próprios olhos. PTT
25. Aqui não é preciso refutar o modo
como algo é percebido, ouvido ou pensado,*
mas sim, anular aquilo que se torna a causa
do sofrimento: a ideia de que isso existe de fato. **
* Isso é uma resposta ao argumento Mente Apenas: "Se a mente não puder perceber a si, perceber outras coisas é impossível, pois isso é baseado na lucidez sobre as percepções que se autopercebe."
** A lucidez da mente que percebe os fenômenos e todo esse processo não estão sendo negados. Mas sim a ideia de que tudo isso exista de fato, incluindo uma mente existente que se autoperceberia. PTT
26. “Ilusões não são diferentes da mente,
mas mesmo assim, são impermanentes.”*
Mas se a mente existe como entidade,
como ilusões seriam iguais a isso?
Você diz “não são diferentes”,
então a mente não pode ser uma entidade.**
* Essa é a posição de uma facção da escola Mente Apenas, os “defensores dos falsos aspectos”. Eles afirmam que as ilusões são aspectos falsos da mente, mas a mente em si existiria de fato.
** Se “ilusões não são diferentes da mente”, elas são a mente, ou seja, a mente é uma ilusão. Se a mente existe, ela não pode conter partes ilusórias ou inexistentes. Shantideva basicamente aponta a contradição: como algo real (a mente) interage com seus falsos aspectos (as ilusões)? Não há como o real ter contato com o irreal.
27. Do mesmo modo como uma ilusão não é verdadeira
mas pode ser vista, aquilo que vê também é assim.*
“O samsara precisa de um suporte existente**,
caso contrário seria vazio como o espaço.”***
* Isso é uma resposta para o argumento: "Se a mente for irreal, ela não
pode perceber."
** O suporte de uma mente que exista de fato.
*** O significado desse argumento é: "O samsara é irreal, pois não há objetos externos à mente. No entanto, ele ainda aparece. Para aparecer, precisa de um suporte real: a mente que se autopercebe. Sem isso, não haveria nenhuma aparência." PTT
28. Como algo irreal, mesmo que se baseie
em algo sólido, teria poder causal?*
Essa mente se torna algo isolado,
que não se relaciona com nada.**
* Mesmo que se baseasse em uma mente inerentemente existente, o samsara — sendo irreal — não teria como aprisionar ninguém, assim como não haveria liberdade disso, já que é inexistente.
** Não há como algo supostamente real (a mente) se relacionar com algo
irreal (o samsara).
29. No caso de a mente estar livre de objetos,
todos os seres já seriam budas.
Então, quais são as vantagens
de dizer que “tudo é a mente”?*
* Quando uma mente está livre de objetos, consequentemente, não há sujeito. Na escola Mente Apenas, é dito que a "não dualidade de sujeito e objeto" é a realidade absoluta (e ela existe de modo inerente, como a mente). A consequência lógica é que todos os seres já teriam a realização dos budas desde o início. Nesse caso, para que classificar os fenômenos como sendo a mente ou como sendo a mente que se autopercebe? Independentemente dessas afirmações, já haveria a realização sobre a natureza da realidade desde o início, sem a necessidade de um caminho.
>>>>> Refutar objeções sobre o caminho, que é vacuidade
30. “Embora saibamos que as coisas são como
uma ilusão mágica, como as aflições são revertidas?
No caso de uma mulher ilusória,
o ilusionista ainda sente desejo por ela.”
31. Esse ilusionista não abandonou
os padrões habituais aflitivos em relação
aos objetos da percepção. Então, ao vê-los,
sua experiência da vacuidade é deficiente.
32. Ao se familiarizar com a vacuidade,
o hábito de dar solidez aos objetos é abandonado.
Ao se familiarizar com a ideia “não há nada”,
até ela mesma no final é abandonada.*
* Ao se familiarizar com o caráter ilusório de todos os fenômenos, eles passam a ser percebidos como vacuidade, não existência. Essa "não existência" é o absoluto? Não, isso é só uma etapa necessária, um conceito que serve como antídoto para a ideia de que as coisas têm solidez. Mas ao se acostumar com isso, em certo ponto, essa fixação mais sutil também é deixada para trás. PTT
33. Em relação a esse não existir, já que não há
o objeto conceitual de algo a ser examinado,
nesse momento, como uma não-coisa, sem base,
pode permanecer diante da mente?*
* Só é possível negar a existência inerente de algo se houver algo. Quando esse algo não é encontrado, sua vacuidade também não é. PTT
34. Quando tanto um fenômeno quanto sua não existência*
não permanecem diante da mente, não há
outra opção senão a pacificação
completa, livre de fixações.**
* Ou seja, tanto um objeto a ser refutado, quando a vacuidade desse
objeto.
** Não há nem a fixação na vacuidade do objeto. "Não há nome ou conceito para a Perfeição da Sabedoria. Incessante e não nascida, como o próprio espaço. É a esfera da sabedoria-lucidez autoreflexiva", conforme diz o Louvor Para a Mãe (da Sabedoria).
NT: essa “lucidez autoreflexiva” se refere à algo que não tem existência inerente. Nesse caso, sim, é possível ela voltar-se para si mesma.
>>>> Refutar objeções sobre o resultado (benefício alheio)
35. Assim como a joia dos desejos e a
árvore milagrosa concedem quaisquer pedidos,
do mesmo modo surge o corpo do Vitorioso,
pelo poder de suas aspirações para aquelas a serem treinadas.*
* Essa é uma resposta para a objeção: "Com a realização da budeidade, todos os conceitos se dissolvem. Então como budas beneficiam os seres, já que não há essa intenção?" A joia e a árvore mencionadas não têm intenções de beneficiar, mas mesmo assim beneficiam. Do mesmo modo é a atividade dos budas que, sem nenhum conceito ou esforço, segue a direção de aspirações mentais anteriores à iluminação.
36. Por exemplo, mesmo depois de o altar do garuda
ter sido construído e seu construtor, falecido,
ainda por muito tempo, ele continua
aliviando envenenamentos e outros males.*
* Garuda é um pássaro da mitologia indiana que destrói o veneno de nagas, seres mágicos similares a cobras. Na Índia, há a história do brâmane Shangku, que realizou o siddhi do garuda, o poder de pacificar doenças causadas por nagas, contaminações etc. Mesmo depois que ele faleceu, seu altar ainda exercia o mesmo poder.
37. Do mesmo modo, tendo construído o altar
do vitorioso com as atividades ligadas ao despertar,
embora bodisatvas passem além do sofrimento,
mesmo tendo partido, realizam todo benefício.
38. “Como oferendas feitas à algo
sem mente conceitual geram algum fruto?”*
Se eles permanecem ou já passaram ao nirvana,
o resultado é o mesmo, segundo o ensinamento.**
* "Algo sem mente conceitual" = Buda. A objeção que está sendo feita é que a geração de mérito dependeria da interação entre um devoto e um ser iluminado conscientemente aceitando a oferenda. Como budas não possuem conceitos como pensamentos ou intenções, como seria gerado mérito?
** O Sutra do Grande Rugido de Leão de Maitreya diz: "Oferendas feitas a mim hoje, ou no futuro para minhas relíquias, têm o mesmo mérito e o
mesmo resultado."
39. Sendo relativos ou reais, assim também
é o mérito, segundo as escrituras.
Por exemplo, no caso de um buda considerado
real, assim também será o mérito.*
* O mesmo vale para um buda considerado como ilusório: mérito ilusório será gerado e isso contribuirá para a liberação (que, no final, também é ilusória, pois não há algo inerentemente existente de onde se libertar).
>>> Provas da grandeza do Mahayana
>>>> O Mahayana é um ensinamento do Buda
40. “Ao realizar as Quatro Verdades, há liberação.
Então para que realizar a vacuidade?”*
Sem este caminho não há budeidade,
como dizem as escrituras.**
* Objeção de uma tradição Shravaka, em que a realização das Quatro Nobre Verdades é suficiente para a iluminação.
** Isso é o que diz, por exemplo, o Sutra da Perfeição da Sabedoria (Prajnaparamita): sem a realização da vacuidade dos fenômenos, é impossível desenraizar completamente as aflições. No entanto, shravakas não aceitam a autenticidade dos sutras Mahayana.
41. Se a verdade do Mahayana não está estabelecida,
como você estabelece a sua tradição?
“Ela está estabelecida porque ambas as partes a aceitam.”
Então, por si mesma, ela não se estabelece.*
* Ou seja, tanto a tradição Shravaka quanto a Mahayana aceitam a verdade dos sutras shravakas. No entanto, essa resposta implica que, sem uma segunda opinião, a tradição não se valida por si mesma.
42. Devido a certas condições, há confiança em sua tradição,
mas elas se aplicam igualmente ao Mahayana.*
Além disso, se o acordo entre duas partes provasse a verdade,
os Vedas e outras tradições seriam verdadeiras.**
* Estas são as condições clássicas para confirmar a veracidade de um ensinamento budista: (1) houve a percepção do Buda ensinando, (2) suas palavras foram compiladas e comentadas e (3) essas escrituras foram transmitidas em uma linhagem. No entanto, as três também são válidas
para o Mahayana.
** Já que elas são aceitas por mais do que "duas partes".
NT: o ponto aqui não é menosprezar outras tradições, mas sim demonstrar que essa lógica legitimaria uma tradição que os próprios oponentes desconsideram.
43. “O Mahayana é alvo de controvérsias.”
Mas não budistas também contestam suas escrituras,
e mesmo entre nós budistas há debates. Consequentemente,
você também deve dispensar sua tradição.
44. Se a raiz dos ensinamentos é o bikshu,
manter-se como bikshu é difícil.*
Para aqueles com fixações conceituais,
passar ao nirvana é difícil.**
* bhikṣu: monge com ordenação completa. Há certo desacordo sobre como um monge completamente ordenado mantém os votos dentro da tradição Shravaka. Shantideva está sugerindo que — como foi dito que algo que é alvo de controvérsias deve ser abandonado — a consequência lógica é que essa tradição então deveria ser abandonada.
** Nessa tradição Shravaka, a realização do não-eu — equivalente à vacuidade do eu — é suficiente para o nirvana. Já na tradição Mahayana, isso não basta. É necessária também a realização da vacuidade dos fenômenos. A vacuidade do eu é uma instância da vacuidade dos fenômenos, que, caso não seja realizada, implica em fixações conceituais que impedem a realização final.
45. “No instante em que as aflições são
abandonadas há liberação.”
Mas há aqueles que mesmo livres de aflições
estão sob o poder do karma.*
* Os oponentes shravakas insistem que, com a realização das Quatro Nobre Verdades, as aflições são erradicadas e há liberação de todo sofrimento. Mas Shantideva faz referência a alguns arhats que, apesar dessa realização, ainda demonstravam estar sob a influência do karma, como Maudgalyayana, Udayin e Upasena.
46. “Apenas por um breve período, pois o desejo,
que causa renascimentos, não mais existe.”
No entanto, do mesmo modo que a ignorância,
por que eles também não teriam um desejo não contaminado?*
* Apesar de ainda terem resquícios kármicos, esses arhats já estão livres do samsara, dizem os shravakas, pois não há mais qualquer desejo ou apego, que são a causa do renascimento. Madhyamikas aceitam que arhats realizaram uma liberação permanente do samsara — no entanto, esse nirvana é baseado em um corpo mental sutil, pois ainda há fixações sutis, não é uma exaustão completa. Shravakas mesmo admitem que arhats têm impedimentos em sua sabedoria. Por exemplo, Maudgalyayana não sabia onde sua mãe havia renascido e Shariputra não sabia se certa pessoa possuía a semente da liberação. Então, apesar de estarem livres do samsara, ainda há um tipo de “ignorância não contaminada” pelas causas da existência cíclica. Se há essa ignorância não contaminada, por que não haveria também um “desejo não contaminado”?
47. Esse desejo vem de condições: as sensações.*
Eles também têm sensações.
Uma mente com tais pontos de referência
ainda tem alguns objetos.**
* Se há desejo, necessariamente, é preciso haver sensações.
** Shravakas perguntam: “Já que não há mais causas para renascimento no samsara, após a passagem, como isso não seria a genuína exaustão do nirvana?” Por não haver uma realização completa da vacuidade (que inclui os fenômenos), suas mentes ainda têm pontos de referência, como por exemplo essas ideias: “O samsara deve ser abandonado; o nirvana, realizado.”
48. A mente sem realização da vacuidade
pode ser interrompida, mas surge de volta,
como em um absorção meditativa sem percepções.
Por isso, é preciso meditar na vacuidade.
49. Se você aceita que as palavras incluídas
nos sutras foram proferidas pelo Buda,
por que não aceita que a maior parte do
Mahayana concorda com seus sutras?*
* Os pontos considerados controversos são uma minoria.
50. Se tudo estiver errado devido
a um ponto não incluído (em seus sutras),
por que tudo não seria a palavra do Vitorioso
devido a um sutra em comum?*
* A lógica de avaliar o conjunto todo com base em um elemento serve também para validar o Mahayana, já que há mais de um sutra em acordo com a tradição Shravaka.
51. Todos os ensinamentos que Mahakashyapa*
e outros não puderam penetrar, quem diz que
eles não devem ser preservados apenas
porque você não os compreende?
* Mahakashyapa: o monge sênior que se tornou o líder da Sangha após a passagem do Buda Shakyamuni. É dito que ele e outros como Shariputra não puderam compreender certos aspectos do Mahayana.
>>>> Provas de que a teoria e prática da vacuidade são a solução
52. A realização de permanecer no samsara
livre das limitações do apego e medo,
para o benefício de seres confusos em sofrimento:
esse é o resultado da vacuidade.*
* Isso é uma resposta para a objeção: “Alguém que realiza a vacuidade não permaneceria no samsara”. É exatamente por não realizar a igualdade entre samsara e nirvana (ou sua vacuidade) que alguém anseia apenas pela liberação. A realização da vacuidade implica em não mais se apegar a aparências positivas, nem temer as negativas.
53. Por isso, refutar a vacuidade
não tem justificativa. Assim,
sem alimentar dúvidas, é preciso
se familiarizar com a vacuidade.
54. A vacuidade é o antídoto para a escuridão
dos obscurecimentos aflitivos e cognitivos.
Desejando realizar rapidamente a onisciência,
como não meditar na vacuidade?
55. Se as coisas que produzem
sofrimento causam pavor,
por que temer a vacuidade
que pacifica o sofrimento?*
* Este verso é uma resposta para a objeção de que a vacuidade desperta medo em alguns praticantes.
56. Caso exista algum tipo de eu,
certamente ele pode ser aterrorizado.
Mas se o eu definitivamente não existe,
quem é que se amedronta?
>> Sabedoria vivenciada através da meditação >>> Meditação no
não-eu individual >>>> Meditação na vacuidade do eu coemergente*
* O eu coemergente é a ideia de um eu que surge naturalmente, baseada nos cinco agregados (forma, sensação, categorização, formações mentais e consciência — que é dividida em seis ou oito consciências).
57. Dente, cabelos e unhas não são o eu.
O eu não é osso ou sangue,
não é muco ou escarro,
nem pus ou linfa.
58. O eu não é oleosidade ou suor.
Pulmões ou fígado não são o eu,
assim como outros órgãos internos.
O eu não é excremento ou urina.
59. Carne ou pele não são o eu,
calor e ventos também não.
Orifícios não são o eu.* As seis
consciências de modo nenhum são o eu.**
* Um eu que realmente existe não pode ser o corpo, pois ele é subdividido em partes (algo inerentemente existente precisa ser permanente, singular e independente). Além disso, nenhuma parte é o eu, pois cada uma delas também é impermanente e se divide em partes menores. PTT
** Já as seis consciências (que percebem os objetos dos cinco sentidos e da mente) — em conjunto ou individualmente — também não podem ser o eu, pois ele seria uma multiplicidade e/ou algo impermanente (que uma hora percebe; noutra, deixa de perceber).
E as consciências são dependentes de objetos. Além disso, aquilo que chamamos de mente nada mais é que o conjunto das seis consciências, pois essa é uma divisão meramente conceitual baseada nos seis tipos de objetos de uma única mente ou consciência. No entanto, como já demonstrado, a mente não pode ser esse conjunto.
Caso se imagine que o eu é a oitava consciência (alaya vijnana/kunzhi), ela em si não tem existência inerente, tendo sido ensinada pelo Buda apenas no Mahayana como um antídoto hábil contra a visão da ausência de causalidade. Em nível absoluto, não há oitava consciência.
A contemplação/meditação na ausência do eu coemergente se refere a investigar e analisar completamente onde a ideia do eu surge, onde permanece e para onde vai. Ao não encontrar nada, simplesmente repouse a mente. Quando o repouso for interrompido por distrações, volte para a investigação. Essas duas etapas devem ser, assim, alternadas. O repouso é um antídoto para a excitação mental; a análise, para o torpor. PTT
>>>> Meditação na vacuidade do eu nominal
>>>>> Refutar a crença em um eu consciente (Samkhya)*
* O motivo de este tópico se referir a um eu consciente é que a próxima seção será sobre um eu inconsciente. Ao refutar esses dois extremos — eu consciente e inconsciente — todos os tipos intermediários de eu, consequentemente, são também refutados.
A tradição filosófica hindu Samkhya defende um tipo de eu espiritual (purusha) individual, consciente e real (ou seja, tem que ser permanente, independente e singular). Diferentemente do eu coemergente anterior, esse é um eu nominal, ou seja, estabelecido de modo mais conceitual.
60. Caso a consciência que percebe sons
seja permanente, ela ouviria som o tempo todo.*
Quando não há um objeto da consciência, ela é o quê?
Por que é chamada de consciência?**
* Se a consciência é permanente, então ela precisa estar consciente de algo o tempo todo, como por exemplo, um som. A resposta do oponente é: “O fato de que o som não é ouvido o tempo todo não significa que a consciência seja impermanente, mas sim que ela não tem mais o som como seu objeto.”
** Ou seja, como é possível chamar algo de consciência se ela não tem nenhum objeto? Por definição, estar consciente implica estar consciente de alguma coisa.
61. Se há consciência sem conhecimento, a consequência
é que um pedaço de pau também é consciente.
Portanto, é certo dizer que não há
consciência sem um objeto diante dela.
62. Se essa mesma consciência percebe uma forma,
nesse momento por que ela também não escuta?
Se o motivo for a ausência de som, então
essa consciência do som também não existe.*
* O que está sendo negado é a tese Samkhya de que a consciência que percebe um som é a mesma que percebe depois uma forma.
63. Como aquilo que tem a natureza de perceber som
se transforma em algo que percebe formas?
“Exatamente como uma pessoa é pai e filho.” Isso ocorre
apenas nominalmente, sua natureza não é assim.*
* A teoria Samkhya é a de que todos os tipos de matéria são modulações de uma única substância (prakriti), percebida pelo eu (purusha). Assim, em essência, apenas um único objeto é percebido sempre, apesar de haver várias aparências. Isso é exemplificado pelo modo como uma única pessoa pode ser tanto pai quanto filho. Essa explicação refutaria a consequência de que essa consciência precisaria ser impermanente e múltipla. No entanto, pai ou filho são apenas designações relativas com base nessas relações pessoais. Quando essa pessoa é considerada independentemente dessas relações (para existir inerentemente, independência é necessária), ela não é pai nem filho. Esses são apenas rótulos, mas não é preciso refutar esse tipo de convenção, já que esse exemplo não prova nada.
64. Sobre esse exemplo, sattva, rajas
e tamas não são pai nem filho.*
Sobre o significado, algo que tem
uma natureza de som não é enxergado.**
* Sattva, rajas e tamas (chamadas de três gunas) são as modulações da matéria essencial prakriti, que dão origem aos fenômenos, segundo a filosofia Samkhya. Se uma pessoa tem uma natureza de pai e filho, esses três elementos também teriam que tê-la, pois eles são a natureza da pessoa, o que resultaria na afirmação absurda de que os três gunas têm uma natureza de pai e filho.
** Já sobre o significado dessa metáfora, se uma consciência que ouve sons também enxerga formas, isso é o mesmo que dizer que a audição existe na visão, mas as pessoas não ouvem sons em formas visuais.
65. Se essa consciência for como uma atriz que é vista
em diferentes papéis, então é impermanente.*
No caso de uma outra maneira
ainda ser a mesma, isso é algo inédito.**
* A consciência do som, por exemplo, tem que cessar para surgir a consciência visual, assim como o papel anterior da atriz dá lugar a um novo personagem. Caso seja dito que a atriz permanece a mesma apesar dos diferentes papéis, isso pode ser refutado da mesma maneira que no verso 63: uma atriz só existe em relação a um papel sendo representado, assim como uma consciência só existe em relação a um objeto. Se a atriz muda de papel, ela é impermanente.
** Se for dito que duas coisas diferentes ainda são a mesma coisa, esse é um tipo de identidade que nunca foi vista, diz Shantideva ironicamente.
66. “Esses aspectos não são verdadeiros.”
Então descreva a essência deles.
“É um mero conhecer.” Então,
todos os seres são um.*
* Segundo o oponente, os aspectos dessa consciência — por exemplo, consciência do som, de formas etc — assim como os personagens de uma atriz, não são reais, mas sim meras aparências. Essa resposta é aceitável, mas então como é essa consciência real e existente, além das aparências? A resposta Samkhya é que ela é um mero saber/ conhecer/perceber, ou seja, uma consciência independente de objetos.
Nesse caso, a consequência lógica é que todos os seres vivos seriam apenas um, porque todos — liberados ou não — se igualam na posse dessa mera consciência, que não é diferenciável por experiências ilusórias individuais. Essa consequência, além de seu caráter ilógico, é particularmente indesejável para o oponente, pois ele afirma que purusha é individual para cada ser, e a realidade é uma dualidade. PTT
NT: Essa consequência de “todos serem apenas um” pode soar budista, mas está muito distante disso, já que esse conceito implica um princípio
absoluto eternalista.
67. Aquilo que tem mente e o que não tem
também são um, pois possuem a mesma mera existência.*
Mas caso as particularidades sejam falsas,
em que se baseia essa similaridade?**
* Purusha (espírito) e prakriti (matéria) no final também se uniriam, pois a interação desses dois aspectos é o que forma o eu. Além disso, seguindo a lógica do verso anterior (duas coisas possuindo uma mesma qualidade básica são uma), o fato de que ambos realmente existem — ao contrário das modulações de prakriti e estados de consciência de purusha — une os dois opostos. Assim, a dualidade que caracteriza a escola Samkhya é refutada.
** Conforme dito no verso anterior, se os aspectos particulares de consciência (ouvir sons, ver formas etc) são falsos, o que sobra dessa mera consciência, que supostamente é real, singular e a base geral da existência dos seres? Não sobra nada inerentemente existente. O que está sendo indicado é que as proposições Samkhya se contradizem e não se sustentam.
>>>>> Refutar um eu inconsciente (Naiyayika*)
* Na tradição filosófica hindu Naiyayika, o eu é onipresente e permanente como o espaço. Ele é inerte e inconsciente — pois se fosse consciente seria impermanente e restrito. Quando se une à consciência, esse eu percebe, conhece e identifica experiências como sendo suas.
68. Algo não senciente também não é o eu,
pois objetos inanimados como vasos é que são não sencientes.
“Mas esse eu percebe porque está unido a uma mente.”
Então a consequência é que sua não senciência acaba.
69. Se o eu é imutável, o que
a consciência altera nele?
Essas afirmações transformam em um eu
o espaço não senciente e inerte.
>>>>> Respostas para objeções sobre a não existência do eu
>>>>>> O não eu é sim compatível com o princípio de causa e efeito
70. “Se o eu não existe, a conexão
entre causa e efeito é ilógica.
Após uma ação, os agregados cessam,
então de quem é o karma?”*
* “Como os cinco agregados surgem e cessam a cada momento, e um agente não existe mais depois da ação, quem experimenta o amadurecimento do karma?”, pergunta o oponente Naiyayika.
71. Os sujeitos de uma ação e seu resultado
são diferentes, e neles não há um eu agindo.
Como isso está estabelecido para
nós dois, há sentido neste debate?*
* Shantideva está devolvendo o argumento para o oponente Naiyayika. Em relação à visão budista dos cinco agregados, os sujeitos da ação e de seu resultado estão separados, conforme a objeção. Mas a impossibilidade de o karma operar também acontece com a ideia Naiyayika de um eu permanente e inerte, que não pode participar de nenhuma ação ou resultado. No entanto, na visão budista, esse paradoxo é resolvido: o karma amadurece em um mesmo contínuo mental (que não é um eu inerentemente existente), formado pelos agregados.
72. Alguém que possui a causa e também
o resultado: não é possível ver isso.
Mas o agente e o receptor (do resultado) se baseiam
em um único contínuo, conforme é ensinado.*
* Para um resultado existir, a causa precisa ter cessado. Se a causa existe junto com o resultado, ela é desnecessária, pois o resultado já existe independente dela e, assim, não há relação causal entre as partes. Dessa mesma maneira, os agregados cessam a cada momento mas, no entanto, mantêm um contínuo, uma identidade relativa, que é onde necessariamente o resultado do karma gerado vai amadurecer. Mas, como demonstrado anteriormente, os cinco agregados não formam um eu realmente existente.
73. Estados mentais passados e futuros
não são o eu, pois não existem agora.*
Já se o eu fosse este estado mental recém-nascido,
quando ele terminar, o eu também acabaria.
* “Contínuo mental” é apenas um rótulo. Sua continuidade é apenas aparente, como a continuidade de uma guirlanda, que é apenas um arranjo de flores isoladas. Assim como não somos o mesmo eu de quando éramos crianças, não somos o mesmo eu de vidas passadas.
74. Por exemplo, ao abrir as partes do tronco
de uma bananeira, não há nada.
Do mesmo modo, caso seja buscado
e analisado, o eu também não é real.
>>>>>> O não eu é compatível com a compaixão
75. “Caso seres sencientes não existam,
por quem há compaixão?”
Por aqueles designados em ignorância,
que aceitamos pelo resultado.*
* Conforme os versos anteriores, se não há eu, não há seres. No entanto, ainda há a experiência de sofrimento para o eu designado, ou fictício, que é atribuído aos cinco agregados. Bodisatvas aceitam essa designação como uma convenção e trabalham pelo resultado, que é a liberação da
ignorância e sofrimento.
>>>>>> O eu como convenção não é refutado
76. “Como não há seres, de quem é o resultado?”
É verdade, a aspiração pela iluminação vem da confusão.
Mas, para pacificar totalmente o sofrimento,
não refute a ilusão sobre o fruto.*
* Em termos absolutos não há nem seres, nem caminho, nem liberação (que é o resultado). Para seres iludidos, tudo isso existe inerentemente. No entanto, perseguir o resultado e trilhar o caminho é um aspecto relativo, ou ilusório, que não deve ser deixado de lado — pois é isso o que remove a experiência de sofrimento — até o momento em que todos os tipos de conceitos e obscurecimentos são deixados para trás, com a realização direta da vacuidade.
77. A causa do sofrimento é o egoísmo,
que prolifera com a ignorância do eu.
Caso diga que “não há como anulá-lo”,
familiarizar-se com o não eu é excelente.*
* Ao dizer “não há como anulá-lo”, o erro do oponente é igualar o eu como convenção — usado ao falarmos ou pensarmos, e que é virtualmente impossível de abandonar, levando em conta nossa linguagem — e o eu inerentemente existente. O eu como convenção é um mero rótulo que não precisa — e nem deve — ser refutado, pois ele não carrega necessariamente o conceito de existência inerente (é possível falar usando o pronome “eu” ao mesmo tempo que reconhecemos sua vacuidade). Já o arraigado conceito de um eu que realmente existe é a causa de toda ilusão e sofrimento, e isso sim precisa ser neutralizado.
>>> Meditação na vacuidade dos fenômenos >>>> (Quatro aplicações da atenção) Aplicação da atenção no corpo
>>>>> Análise do corpo em geral
As partes não são o conjunto (PTT)
78. O corpo não é a perna ou panturrilha,
não é a coxa ou cintura,
não é o estômago ou as costas.
O peito ou os braços também não são o corpo.*
* “Corpo” é apenas um rótulo ou designação, sem existência inerente. Se um corpo existisse inerentemente, ele teria que ser singular (sem partes) e, desse modo, o todo teria que ser visto onde quer que olhemos, ou seja, teria que estar presente em cada parte. Mas não está.
79. O corpo não é a costela ou mãos,
não é a axila, ombros, nem as entranhas,
não é a cabeça ou garganta.
Então o que é este corpo?*
* O corpo não pode ser encontrado nas partes e, apesar do todo sugerir uma unidade, isso é apenas uma aparência. Além disso, caso uma parte seja amputada, o corpo permanece. O que é então este corpo? No final (nível absoluto), não é nada, apenas um nome.
O conjunto não está nas partes (PTT)
80. Se este corpo estiver em cada parte
do conjunto, seus aspectos estariam
de fato em cada parte, mas o
corpo em si estaria aonde?*
* Talvez esse corpo inerentemente existente (que precisa ser singular, não composto) se espalhe por nossa anatomia, preenchendo cada parte. No entanto, ao examinar, não encontramos nenhum corpo singular permeando os membros, tal corpo não é encontrado.
81. Caso o corpo como um todo
esteja nas mãos ou outra parte,
haveria tantos corpos
quanto essas partes.
82. Se não há corpo fora ou dentro,
como ele poderia estar em partes
como as mãos? Se não há outra opção
além das partes, como ele existe?*
* Ao procurar analiticamente, não vemos nenhum corpo (singular e permanente) no exterior, com nossos sentidos; nem internamente, na consciência. No entanto, além das partes, não há outra possível base de designação para o rótulo “corpo”.
Perceber um corpo é iludir-se pelas aparências (PTT)
83. Assim, não há corpo. A confusão cria a ideia
de um corpo com base nas mãos e outras partes,
da mesma maneira que uma pilha de pedras arranjada
de forma específica é percebida como uma pessoa.*
* Diante desse exemplo, pode ser feita a objeção: “Confundir essa pilha com uma pessoa é algo passageiro. Já a aparência de um corpo singular persiste. Então, são duas coisas diferentes.” PTT
84. Enquanto houver condições reunidas,
aquela forma terá a aparência de uma pessoa.
Do mesmo modo, enquanto houver mãos
e outras partes, haverá a aparência de um corpo.
>>>>> Análise específica das partes
85. Dessa maneira, o que é a mão,
além de um conjunto de dedos?
Eles também são uma reunião de articulações,
que ainda são divididas em partes.
86. As partes também se dividem em partículas,
que ainda se segmentam em direções,
que também não possuem partes indivisíveis.
São como espaço. Assim, partículas igualmente não existem.
>>>>> A necessidade de abandonar o apego ao corpo
87. Assim, que pessoa com discernimento se apegaria
a uma forma que é como um sonho?
Já que, como demonstrado, não há corpo,
o que é homem ou mulher?*
* Essa análise e contemplação do próprio corpo também deve ser feita em relação aos corpos de outros seres, e também para objetos como casas ou montanhas, até a firme convicção de que isso tudo é como espaço, sem existência inerente. Quando isso for compreendido e o apego ao próprio corpo e dos outros tiver sido neutralizado, tudo o que surge no pós-meditação deve ser visto como ilusório — há aparências, sem existência inerente. Durante a meditação, descanse no estado natural, livre de conceitos. Como diz um sutra: “Ó Manjushri, quem ver que este corpo é como espaço está praticando a aplicação da atenção no corpo.”
>>>> Aplicação da atenção nas sensações
>>>>> Exame da natureza das sensações*
* “Sensações” aqui se referem a estímulos que consideramos agradáveis
ou desagradáveis.
88. Se uma sensação desagradável realmente existe,
por que ela não compromete uma alegria intensa?
Se um objeto for inerentemente agradável, por que
algo delicioso não deleita alguém em sofrimento?*
* Reconhecer a vacuidade de sensações agradáveis ou desagradáveis é essencial, pois elas são a origem de aflições como apego ou raiva. Se uma sensação desagradável tivesse existência inerente, ela deveria bloquear o surgimento de conforto, e vice-versa. Além disso, caso algum objeto externo fosse agradável em si mesmo, ele deveria provocar essa sensação sempre, o que não ocorre.
89. “Uma sensação não é sentida quando
é encoberta por outra mais forte.”
Mas como algo que não é
sentido pode ser uma sensação?
90. “Um sofrimento sutil ainda existe.”
Sua qualidade definidora já não foi eliminada?
“O que sobrou dele é um leve prazer.”
Mas o aspecto sutil ainda é de sofrimento.*
* Sobre o verso anterior, o oponente responde: “Não é que um pequeno sofrimento, ao ser encoberto por uma grande sensação de prazer, deixa de ser sentido. Ele ainda existe de modo sutil.” Mas foi dito anteriormente que esse aspecto de sofrimento é eliminado pela sensação maior de prazer. “Na verdade ele não é eliminado — dentro do contexto de uma sensação maior de prazer, esse pequeno sofrimento acaba sendo sentido como um ‘pequeno prazer’.” Essa resposta não é aceitável, pois foi afirmado que “um sofrimento sutil ainda existe”. Caso esse “sofrimento sutil” seja a mesma coisa que um “leve prazer”, qual é o sentido de chamar isso de sofrimento?
91. “Quando condições contrárias surgem,
o sofrimento não aparece.”
Isso não prova sua fixação no conceito
de algo inexistente ser uma sensação?*
* Há também a seguinte objeção à ideia de duas sensações existirem ao mesmo tempo: para uma sensação realmente existir, ela tem que ser permanente e singular, o que impede o surgimento de qualquer outra sensação. O oponente responde: “Não é que as sensações existam como algo permanente, elas surgem baseadas em causas e condições.” Sendo assim, sensações são dependentes, ou seja, não têm existência inerente. Portanto, “sensações agradáveis, desagradáveis etc” são apenas conceitos e nomes, sem ligação com a realidade. PTT
92. Sendo assim, o antídoto para isso é
se familiarizar com essa análise.
A estabilidade meditativa que nasce no campo
da investigação é o alimento dos iogues.*
* Como as sensações são a raiz de todo apego e raiva, é crucial chegar a um entendimento nítido de que elas não têm existência inerente e, assim, soltar as fixações. É preciso, repetidamente, meditar nisso.
>>>>> Exame da causa das sensações (as percepções)
93. Caso haja um intervalo entre o órgão do sentido
e seu objeto, onde eles se encontram?
Já se não houver separação, são um.
Então o que toca o quê?*
* Em resposta a esse verso, poderia ser dito que eles simplesmente se tocam. Mas isso é apenas uma aparência. Para haver contato real (ou seja, total) entre duas partes, elas precisariam se tocar de modo omnidirecional, do contrário, o contato é apenas parcial e relativo — percepções baseadas nesse tipo de contato incompleto não podem ser consideradas reais, assim como ver ⅓ de uma banana não pode ser descrito como “ver uma banana de fato”.
94. Partículas fundamentais não podem
se interpenetrar, pois não têm partes,
são uniformes. Sem interpenetração
não há fusão, e não há contato.*
* Em relação ao verso anterior, o oponente diz: “Não é que um sentido toque seu objeto, mas sim, suas partículas indivisíveis fazem isso.” O conceito de partícula indivisível é necessário para estabelecer a realidade das duas partes, do contrário, elas são vacuidade (algo que se subdivide não tem existência inerente). E, para esse contato ser real e total, é preciso uma interpenetração completa, omnidirecional. Mas, por definição, partículas indivisíveis não têm partes, ou seja, não têm por onde essa penetração acontecer.
95. Como poderia ser lógico
dizer que coisas indivisíveis
têm contato? Caso veja tal
encontro, mostre-me.
96. O contato com a consciência imaterial
é ilógico. Já uma reunião geral
também não têm solidez,
como na investigação anterior.*
* Poderia ser imaginado que a consciência sim entra em contato com objetos. No entanto, é impossível algo imaterial como a mente interagir com objetos materiais, já que não há uma base comum para esse contato. No caso de ser levantada a hipótese de a percepção ocorrer com base em uma reunião de causas e condições, fenômenos que são um conjunto de partes não têm realidade inerente, como demonstrado nos versos 78 a 86.
97. Se, desse modo, não há contato,
de onde surge a sensação?
Que motivo há para tanto desgaste?
Quem está prejudicando quem?*
* Sem contato, não há percepção. Então, se sensações prazerosas são inerentemente inexistentes, para que tanto esforço em obtê-las? O mesmo vale para o oposto: onde está o sofrimento? Quem ele está perturbando? Isso tudo é apenas uma ilusão da mente, que em si, também é ilusória.
>>>>> Exame do resultado das sensações
98. Se não há alguém que sente
e a própria sensação não existe,
nesse momento, ao ver essa condição,
como o apego não seria neutralizado?
>>>>> Exame do sujeito das sensações
99. Sensações visuais até as táteis são
em essência como sonhos ou ilusões.
Caso elas fossem simultâneas com a mente,
as sensações não seriam percebidas.*
* A sensação ocorre ao mesmo tempo que seu sujeito (a consciência) ou não? Para haver uma relação de causalidade entre uma sensação e quem a experimenta, é preciso que a causa (a sensação) ocorra antes que o resultado (a mente que a experimenta). Caso existam ao mesmo tempo, o resultado já existe independente da causa, ou seja, não haveria relação entre as duas partes: absurdamente, a mente que experimenta uma sensação ocorreria sem que a sensação fosse sentida.
100. Algo que surge antes é lembrado pelo
que surge depois, mas não é experienciado.
A sensação também não experiencia a si mesma,
nem é sentida por uma outra parte.*
* Já se sensação e a consciência dela ocorrerem uma depois da outra, quando surge a consciência, a sensação já não existe e, assim, ela é apenas uma memória, não podendo ser vivenciada diretamente no passado, no presente e no futuro. Caso seja dito que a sensação sente a si mesma, isso é refutado do mesmo modo como anteriormente foi descartada a possibilidade de a mente ver a si mesma.
101. Não há nenhum sujeito das sensações,
então elas mesmas não existem.
Assim, como elas prejudicariam
este agregado sem eu?
>>>> Aplicação da atenção na mente >>>>> A mente não tem
existência inerente
102. A mente não reside nos sentidos, em seus
objetos como a forma, ou entre eles.
Ela não está dentro ou fora,
e em nenhum outro lugar é encontrada.
103. Aquilo que não é nem o corpo nem outra coisa,
que não se funde com ele e nem é algo separado,
não é nada. Por isso, a natureza dos seres
está além do sofrimento: nirvana.
>>>>> A mente é não nascida
104. Se a consciência precede seu objeto,
ela surge focando em quê?
Já se forem simultâneos,
a consciência surge focando em quê?*
* A definição de consciência é uma mente que percebe algo. Poderia ser imaginado que a consciência tem que existir pois há aparências. Aí, há três possibilidades: a consciência surge antes de seu objeto, é simultânea com ele, ou surge depois. No primeiro caso, ela existe antes do objeto, então não há relação entre os dois. No segundo caso, ela (que é o resultado do processo) existe ao mesmo tempo que seu objeto (que é a causa), ou seja, o resultado já existe junto com a causa, então também não há relação. PTT
105. Além disso, se ela vem depois do objeto,
nesse momento ela nasce baseada em quê?
Assim, o surgimento de todos
os fenômenos está além de conceitos.
* O terceiro caso, de uma consciência surgindo depois, implica que o objeto já não existe mais. Então, essa consciência surge de onde? O surgimento dos fenômenos, assim como a mente ou o sujeito das experiências, são assim inconcebíveis pois eles não têm existência inerente. PTT
>>>> Aplicação da atenção nos fenômenos >>>>> Refutar objeções
>>>>>> Refutar a negação das duas verdades
106. “Nesse caso, não há verdade relativa.
Então como pode haver duas verdades?
Além do mais, se o relativo depende da mente, como
os seres sencientes poderiam transcender o sofrimento?”*
* A primeira objeção é: se os fenômenos não têm existência inerente, então não haveria verdade relativa, nem duas verdades, argumenta o interlocutor. A resposta é que as duas verdades são ensinadas como um meio hábil didático. Em absoluto, não existe nem uma única verdade, apenas o dharmadhatu inconcebível, além de formulações. Mas no contexto da prática, se fala em duas verdades para ilustrar a diferença entre o modo como as coisas aparentam ser e o modo como de fato são.
Segunda objeção: já que a verdade relativa é o modo como a mente dos seres percebe, já que eles não podem transcender a própria mente, então a ilusão e o consequente sofrimento nunca terminariam?
107. Esse tipo de noção são ideias nas mentes
dos seres, não é a verdade relativa em si.
Caso seja adquirida confiança nisso, então há
verdade relativa. Se não, ela mesmo não existiria.*
* Essa aparente incapacidade de transcender o sofrimento (passar ao nirvana), referida no verso anterior, surge na perspectiva de seres que não enxergam a realidade. A “verdade relativa em si” — ou seja, do ponto de vista da realização — é a presença de aparências relativas como sendo a própria expressão da realidade absoluta, de modo nenhum bloqueando sua realização. Aparências (verdade relativa) existem junto com a natureza das aparências (verdade absoluta) do mesmo modo que o reflexo da lua existe junto com a lua. Ao ganhar confiança nisso, então há entendimento sobre como aparências são uma verdade relativa, ou seja, não têm solidez e não bloqueiam a verdade absoluta. Já se os fenômenos não fossem assim vacuidade, nada poderia surgir ou cessar, e então não haveria verdade relativa. PTT
>>>>>> Refutar objeção sobre impossibilidade de análise
108. “A consciência e o objeto
conceitualizado dependem um do outro.”
Sim, mas toda investigação é expressa
com base no senso comum.*
* O oponente argumenta que um objeto depende de uma consciência para ser concebido, ambos são interdependentes. Assim, seria impossível a análise objetiva de nenhum objeto, já que ele é inseparável do sujeito. De fato, esse argumento procede. Essa interdependência prova a ausência de existência inerente de cada parte, no nível absoluto. No entanto, neste contexto relativo, o que está sendo analisada é a aparência dos fenômenos, que sem nenhuma investigação, conforme o senso comum, são tomados como existentes. Com base nisso, chega-se à sua vacuidade. PTT
>>>>>> Refutar objeção sobre regressão infinita da análise
109. “Caso a própria investigação
seja analisada, essa mesma
análise pode ser investigada,
não havendo um fim.”
* O oponente argumenta que essa própria investigação precisa ser verificada, e essa nova verificação idem, levando a uma regressão infinita. PTT
110. Após analisar um objeto,
a investigação termina sem um suporte e,
desse modo, não surge um sujeito.
Isso em si é o que é chamado de nirvana.
>> Eliminação de enganos pela lógica
>>> Refutar crença na existência inerente
111. Para aqueles que consideram sujeito e objeto
verdadeiros, isso é bem difícil de manter.
Caso tudo se baseie na consciência,
em que se baseia a existência da consciência?*
* Poderia ser dito que objetos existem pois há uma consciência que os percebe, assim validando-os. No entanto, quem valida essa consciência? Como demonstrado antes, se ela existe como entidade, não pode voltar-se para si mesma. E caso uma outra consciência seja necessária, então há regressão infinita.
112. Ou então, com base no objeto, chega-se à consciência.
Mas no que se baseia a existência do objeto?
Já que, como antes, há uma dependência mútua,
as duas partes também não têm existência.*
* Um outro argumento é que a consciência existiria pois há objetos que existem. E quem garante isso? A consciência? Então são interdependentes, ou seja, precisam um do outro para existirem, não existem por si só, são vazios de existência inerente.
113. Já que, sem um filho, alguém não é pai,
de onde vem o filho? Não havendo filho,
não há pai. Desse mesmo modo é a
não existência de consciência e objeto.
114. “Um broto nasce de uma semente.
Assim sabemos sobre a semente.
Como não reconhecer a existência do objeto,
através da consciência que ele produz?”*
* O interlocutor insiste no argumento dizendo que a relação entre objeto e sua consciência é a mesma de uma semente e seu broto: a existência do objeto estaria provada por ele ter dado origem à consciência dele.
115. Uma consciência externa é que deduz
a semente à partir de um broto.
Mas quem compreende a existência
dessa consciência que concebe o objeto?*
* O exemplo da semente e do broto não ilustra a situação, porque para — ao ver um broto — deduzirmos a existência prévia de uma semente, é necessária uma consciência que compreende essa relação. Quem não tem esse conhecimento não compreenderia que a planta surgiu de uma semente. Já sobre a consciência que surge com um objeto — e que, assim, provaria a existência do objeto — o que prova a existência dessa própria consciência? Como demonstrado anteriormente, isso não pode ser provado nem pela própria consciência, nem por uma outra. Assim, a existência inerente de fenômenos convencionais não pode ser estabelecida, eles são apenas rótulos e conceitos.
>>> Argumentos pela visão da vacuidade >>>> Investigação da causa:
fragmentos-vajra >>>>> Refutar a crença na originação sem causa
116. Pessoas leigas percebem
diretamente que tudo tem causas.
A haste e as outras divisões do lótus
surgem de diversas causas.*
* A filosofia hindu Tcharvaka diz que as coisas não têm nenhuma causa, elas surgiriam por si mesmas. Sobre este argumento, qualquer pessoa pode tanto ver quanto inferir que os fenômenos surgem de causas. O oponente poderia argumentar ainda que os diversos aspectos de um fenômeno, como as várias partes de uma flor, não estão contidas na causa (a semente é uma só), assim, não haveria relação causal. Mas, na verdade, a semente não é singular, ela contém diversos elementos, que dão origem a diversos resultados. Isso tem validade geral no contexto da originação relativa: diversas causas geram diversos resultados.
117. “Quem cria essas diversas causas?”
Elas surgem de diversas causas anteriores.
“Como causas têm o poder de gerar resultados?”
Devido ao poder de causas anteriores.*
* O interlocutor Tcharvaka continua: “Mas quem arranja essas diversas causas?” Ninguém, elas surgem de causas anteriores. Em relação ao porquê de causas poderem gerar resultados, isso acontece devido ao encadeamento anterior de causas e resultados, e assim por diante — essa é a natureza de fenômenos relativos, cuja originação dependente não tem um início. Em resumo, a única maneira de algo não ter uma causa é se isso for eterno. No entanto, fenômenos surgem e cessam.
Uma outra contradição dessa visão é a própria afirmação de que não há causas, já que um argumento é feito para provocar a compreensão dele, ou seja, ele em si já é uma causa. PTT
>>>>> Originação causada por uma outra entidade >>>>>> Refutar a crença na originação a partir de uma causa permanente
118. Se a causa dos seres for um deus poderoso,
primeiro diga o que é esse deus.
“São os elementos”. Certamente que sim,
para que nos cansarmos debatendo meros nomes?*
* No budismo também se diz que os fenômenos surgem (relativamente) a partir dos cinco elementos.
119. No entanto, elementos como a terra
são múltiplos, impermanentes, inanimados
e mundanos. Como são pisoteados
e poluídos, não são um deus.
120. Deus não é o espaço, já que ele é inerte.
Não é o eu, como já foi refutado.
Um criador inconcebível estaria além de
conceitos, então qual é o sentido de falar dele?*
* A ideia de um eu divino inerte foi refutada nos versos 68 e 69. Caso seja argumentado que essas refutações não invalidam Deus, pois para nós sua natureza é inconcebível, a consequência lógica é que, se é inconcebível, sua qualidade criadora e divina também é. Não haveria como saber se isso é verdade e, portanto, qualquer afirmação perde o embasamento.
121. O que você afirma que ele cria? Se for o eu,
tanto isso quanto os cinco elementos e Deus
não compartilham uma natureza permanente?
Se for a consciência, ela surge a partir de um objeto,*
* Segundo o oponente hindu, o eu (atman) e a natureza primordial da matéria (prakriti) também são permanentes, assim como Deus. Sendo assim, como um poderia ter criado os outros? Já na hipótese de Deus criar os estados de consciência, isso contraria nossa experiência de que a consciência de um objeto surge a partir desse objeto. Além disso, não há um início para esse processo, como haveria se a consciência fosse criada.
122. sem um início. Já prazer e sofrimento
vêm do karma. Então, diga o que é criado.
Se essa causa (Deus) não tiver início,
como o resultado pode ter?*
* Se esse deus não têm início, ele é permanente, o que implica que o surgimento de uma causa para dar origem a um resultado temporal é impossível, ou seja, seus resultados precisariam ser igualmente sem início. PTT
123. Por que ele não cria constantemente,
já que não depende de nada externo?
Como não há nada que ele não criou,
do que ele dependeria?*
* Respondendo ao verso anterior, teístas dizem que Deus cria em estágios: uma hora ele cria uma coisa e noutro momento, outra coisa. No entanto, levando em conta que a causa de toda criação é esse próprio deus permanente, a causa também precisa ser permanente, ou seja, o processo de criação deveria acontecer o tempo todo. Poderia ser respondido que, na verdade, Deus dependeria sim de certas condições para criar, mas isso contradiz a afirmação de que ele seria onipotente, ou seja, não dependeria de nada.
124. Caso ele dependa de algo, então a causa
é um conjunto de condições e não Deus.
Quando há essa reunião, ele não teria opção
senão criar. E quando não há, não poderia criar.
125. Se Deus cria sem desejar, isso implica que
ele está sob o poder de alguma outra coisa.
Já se deseja, então isso depende do desejo.
Apesar de criar, como ele seria onipotente?
126. Aqueles que afirmam a permanência
de partículas fundamentais já foram refutados.*
Já a filosofia Samkhya afirma que prakriti
é permanente e a causa dos seres.
* Essa é a visão da filosofia Mimamsaka, de que partículas fundamentais são a causa dos fenômenos. Isso foi refutado em versos anteriores: qualquer partícula ainda pode ser subdividida infinitamente, sendo compostas, ou seja, não têm existência inerente. A filosofia Samkhya será abordada de novo na próxima seção.
>>>>> Refutar a crença em autoprodução
>>>>>> Refutar a substância primordial
127. Eles afirmam que quando as qualidades
sattva, rajas e tamas estão em equilíbrio,
isso é prakriti. Em desequilíbrio,
isso é o mundo e os seres.
128. Algo singular que possui uma natureza tripla
não faz sentido, portanto não existe.
Do mesmo modo, as qualidades não existem,
pois cada uma também seria dividida em três.*
* Na filosofia Samkhya, cada qualidade ainda se subdivide novamente em três, o que resulta numa regressão infinita. PTT
129. Se elas não existem, a existência de sons
e tudo mais também se torna impossível.
Coisas inanimadas como panos
não contêm qualidades como prazer.*
* Segundo a filosofia Samkhya, os fenômenos surgem a partir da modulação dessas três qualidades. Se elas não existem, então fenômenos como sons, igualmente. O significado de sattva, rajas e tamas é prazer, dor e indiferença. Objetos como um pedaço de pano não possuem essas qualidades.
130. “Mas essas coisas têm a natureza de sua causa.”
Já não analisamos as “coisas”?*
Para você, a causa é prazer etc, no entanto,
mantas e tudo mais não surgem disso.
* O oponente insiste que objetos possuem essa natureza prakriti. Mas a vacuidade de objetos ou coisas já foi estabelecida, por exemplo, nos versos (78 a 84) que investigaram a natureza dos corpos.
131. Já prazer e as outras qualidades sim surgem de
coisas como cobertores, pois sem elas não
há prazer e tudo mais. A permanência
de qualidades como o prazer é algo jamais visto.*
* O interlocutor argumenta que a qualidade do prazer (sattva) não é necessariamente algo temporário, que surge da interação com objetos, mas sim uma qualidade eterna de prakriti. No entanto, um prazer permanente ou eterno não é algo que percebemos.
132. Se qualidades como prazer têm instâncias
manifestas, como isso não é sentido?
“Ela se tornou sutil.” Mas como
ela pode ser aparente e sutil?*
* Em resposta ao verso anterior, o oponente diz que uma qualidade como prazer (sattva) aparece às vezes sim, outras não. Shantideva pergunta como isso é possível, já que essas qualidades têm instâncias visíveis, segundo a própria filosofia Samkhya. O oponente responde que, às vezes, ela se torna sutil e imperceptível. No entanto, como é possível algo que é definido como permanente e singular alternar entre visível e invisível?
133. Deixar de ser manifesta e se tornar sutil
— assim há dois estados impermanentes.
Portanto por que você não assume que todas
as coisas na verdade são impermanentes?
134. Caso a qualidade manifesta seja o próprio prazer,
o prazer manifesto é de fato impermanente.*
Já se disser que algo inexistente
não surge pois não existe,
* Respondendo ao verso anterior, o oponente Samkhya diz que independentemente de ser manifesta ou sutil, a natureza do prazer (sattva) jamais seria perdida, mantendo sua permanência. Sobre isso, Shantideva diz que há duas possibilidades: ou a natureza sattva e sua qualidade manifesta de prazer são duas coisas separadas ou são uma unidade. Caso sejam separadas, quando a sensação de prazer se torna sutil, a natureza sattva deveria continuar a ser sentida como um prazer permanente, o que não acontece. Já se forem uma unidade, então a qualidade sattva precisa ser temporária e impermanente, do mesmo modo que a sensação de prazer. As duas linhas finais integram o argumento do próximo verso.
>>>>>> Refutação de fato da autoprodução: o argumento principal
135. isso se aplica para o surgimento de algo
não manifesto, apesar de você não admitir.*
Caso diga que o resultado já existe na causa,
comer comida se torna o mesmo que comer fezes.
* O final do verso anterior se refere ao argumento Samkhya de que, quando sattva (prazer) se recolhe para um estado imperceptível, isso ficaria em um estado de dormência, existindo apenas potencialmente. Do contrário, não teria como surgir depois, já que “algo inexistente não surge pois não existe”. Esse argumento não funciona, pois implica que causa e resultado existem ao mesmo tempo, o que é uma impossibilidade lógica, como já demonstrado. Ainda há outra questão: se os resultados já existem nas causas, por que eles não são percebidos? O oponente responde que eles estão em um estado imperceptível, depois mudam para um estado perceptível. No entanto, isso é o mesmo que dizer que algo não existente se tornou existente, pois algo que não estava manifesto na causa, manifesta-se a partir do não manifesto, no resultado.
Além disso, dizer que resultados já existem nas causas implica que, por exemplo, comemos aquilo em que a comida vai se transformar, brinca Shantideva.
136. Ou então, com o dinheiro para roupas,
compre sementes de algodão e vista isso.
“Pessoas leigas não enxergam pois estão iludidas.” Sim,
isso é explicado por aqueles que tem esse conhecimento.*
* Ironicamente, Shantideva comenta que, se o resultado já está na causa, não precisaríamos comprar roupas, bastando ter as sementes do algodão. O interlocutor responde que as pessoas não veem que o resultado já está na causa porque estariam iludidas e ignorantes sobre a realidade. Shantideva temporariamente parece concordar, como preparação para o
próximo argumento.
137. Mas leigos também precisam ter esse
conhecimento, portanto como eles não veem?
“Eles não têm cognição válida.” Então,
a manifestação que eles veem é falsa.*
* No final do verso anterior é mencionado que os sábios Samkhya sim conseguiriam ver a realidade de que os resultados já estão nas causas. No entanto, usando a lógica Samkhya, já que ver a realidade é o resultado de um processo filosófico/espiritual, esse fruto já deveria estar contido na causa, a mente dos seres. Então porque eles não veem isso? A resposta de que seres iludidos não possuem cognição válida implica que tudo que eles percebem é falso. Então os fenômenos que percebemos seriam todos falsos, não havendo nada para supostamente possuir a natureza prakriti, anulando assim os fundamentos dessa filosofia.
138. “Se a cognição válida não tiver validade,
sua análise não se torna falsa?
Assim, na realidade em si,
meditar na vacuidade não tem lógica.”*
* Como foi mencionada a falsidade da cognição de seres iludidos, o interlocutor devolve a questão: caso alguém que não tenha cognição válida analise os fenômenos e chegue à vacuidade, isso em si não tem como ser verdadeiro.
139. Como um objeto a ser analisado não é
encontrado, não há fixação em sua
inexistência. Portanto, a inexistência
de um falso objeto é claramente falsa.*
* A visão Madhyamaka não é um sistema que estabelece a existência de uma vacuidade, com base em cognição válida. Ao negar a existência inerente de um fenômeno e chegar à sua vacuidade, isso é apenas um meio hábil, uma etapa preliminar, para neutralizar a fixação nos fenômenos como tendo existência inerente, que é a causa da existência cíclica. Para a realização final, tanto existência quanto inexistência são visões a serem abandonadas.
140. Assim, em um sonho em que
um filho morre, a ideia dessa
ausência substitui a ideia
da presença, mas ambas são falsas.*
* Como dizem os Versos-Raiz Madhyamaka, de Nagarjuna: “O que é chamado de existência não é nada além da fixação na permanência das coisas. Já não existência é a visão do nada. Portanto, pessoas instruídas e sábias não mantém que algo é ou não é.”
>>>>> Conclusão do argumento
141. Portanto, analisando assim vemos que
não há nada que não possua causa,
e nada que já exista em uma causa individual
ou num conjunto de causas e condições.*
* Os versos anteriores demonstraram que não há fenômeno sem uma causa e que uma causa eterna não pode produzir nenhum fenômeno. Fenômenos surgem relativamente em dependência de causas e condições. No entanto, nenhum desses fenômenos já existe na causa ou num conjunto de condições.
142. Fenômenos também não surgem
de uma outra coisa, não permanecem,
nem partem.* Qual é a diferença entre a ilusão
e isso que a ignorância assume como existente?
* Fenômenos também não surgem de algo externo a eles, não permanecem como algo que surgiu de condições (mas no presente independem delas), e ao cessarem não vão para lugar nenhum. É por isso que se diz que a causalidade dos fenômenos é vacuidade — logo, os fenômenos também são.
No verso anterior, “nada que já exista em uma causa individual” refere-se à refutação da autoprodução e da produção externa; já “conjunto de causas e condições” se refere à refutação de ambas (simultaneamente) e de nenhuma delas. Assim, todas as quatro possibilidades lógicas (sim, não, ambos e nenhum) são refutadas.
>>>> Investigação da natureza: o grande argumento da interdependência
143. Coisas emanadas através da magia
e coisas emanadas por causas.
Examine de onde elas vêm
e para onde vão.*
* A conclusão dessa análise é que não há diferença. Fenômenos são como miragens ou ilusões mágicas, não têm existência verdadeira.
144. Algo que é visto quando há condições,
e não é visto na ausência delas,
é uma fabricação, similar a um reflexo.
Como isso poderia ter alguma verdade?*
* Algo que depende de condições não existe por si só, é vazio de existência inerente. Como diz Nagarjuna: “Não há nenhum fenômeno que não se origine dependentemente, portanto, não há nenhum fenômeno que não seja vazio.”
>>>> Investigação do resultado: o argumento que refuta a originação
de efeitos existentes ou inexistentes
145. Qual é a necessidade de uma causa
para algo que já existe?
Caso não exista, qual é
a necessidade de uma causa?*
* Quando investigamos se um resultado existe de fato ou não, caso ele exista inerentemente, isso exclui uma causa, pois se ele dependesse de uma, seria um fenômeno dependente (existência inerente implica independência).
Sobre a segunda pergunta, poderia ser respondido que, apesar de algo inexistente não ter sido produzido — ou seja, não tem causa — através de causas e condições, ele passaria a existir.
146. Mesmo um bilhão de causas não poderiam transformar
algo que não existe. Como nesse momento esse nada
seria alguma coisa? Ou que outra coisa poderia
se transformar nessa nova entidade?*
* Poderia ser imaginado que o estado de não existir se transformaria no estado de existir. No entanto, de que maneira, nesse momento em que não existe algo, poderia existir uma “entidade que não existe”? Não há nenhuma coisa para se transformar em outra. Ainda poderia ser argumentado que, na verdade, não é que o nada se transforma em algo, mas sim, uma outra condição se transforma nessa nova entidade. Mas que outra condição seria essa? É impossível conceber algo que não seja nada (a ausência do resultado) nem alguma coisa (a preexistência do resultado). Se já existe algo e isso se transforma, isso é apenas um rearranjo de aparências ilusórias. PTT
147. Se, na hora em que não existe, algo não tem
como vir a existir, quando então isso
aconteceria? Não havendo o surgimento
de algo, a inexistência não se desfaz.
148. Se a não existência de algo não se desfaz,
é impossível um momento em que isso passa a existir.
E algo também não pode deixar de existir, pois isso
implicaria que há uma natureza dupla.*
* Se algo que não existe passa a existir, no momento do surgimento, essa entidade existe e não existe ao mesmo tempo, ou seja, há uma natureza dupla, e isso anula a existência inerente, que precisa ter natureza singular (vale lembrar que toda refutação é sobre existência inerente, e não relativa). E o mesmo vale para algo que deixaria de existir. PTT
149. Assim, não há cessação nem existência,
não há nenhuma entidade existente.
Portanto, todos estes seres
jamais nascem ou terminam.
150. Seres são como sonhos. Se forem
investigados, são similares à bananeira.
Em tal qualidade*, não há diferença
entre realizar o nirvana ou não.**
* NT: “tal qualidade” se refere à palavra tibetana “de nyid”, sobre a qualidade inefável dos fenômenos que aparecem sem existir de fato.
** Como na verdade não há nenhuma prisão, ou nenhum fenômeno que aprisione, também não há liberação deles.
Esta seção (>> Refutação de enganos pela lógica) demonstrou que os fenômenos que aparentam existir em causas, natureza e resultados contêm as “três portas da liberação” que levam à realização da verdade absoluta: eles estão (1) além de características, (2) são vacuidade e (3) estão além da especulação. A análise das causas mostra que elas (1) não têm características conceituas (ou não há causas). A análise sobre a natureza dos fenômenos mostra que ela (2) é vacuidade. A análise sobre os resultados revela que eles (3) estão além de qualquer especulação.
>> Os benefícios da realização da vacuidade
>>> Abandono das oito preocupações mundanas
151. Desse modo, em relação a coisas vazias,
o que há para ganhar? O que há para perder?
Quem seria respeitado ou muito
humilhado? E por quem?
152. De onde vem o prazer ou sofrimento?
O que há para gostar ou desgostar?
Ao procurar na natureza essencial,
quem deseja? E o que há para desejar?*
* Como diz Nagarjuna, em Carta a um Amigo, “Você que conhece o mundo, as oito preocupações mundanas são: ganho e perda, prazer e desconforto, fama e má reputação, elogios e críticas. Acabe com essas fixações, sendo indiferente a isso.”
153. Após a investigação, quem morre
neste mundo de seres vivos?
O que acontecerá? O que aconteceu?
Parentes e amigos se referem a quem?
154. Seres como eu, entendam
de uma vez que tudo é como espaço.
Aqueles que desejam o próprio conforto,
através de causas como esforços ou alegrias,
>>> O aparecimento sem esforço de grande compaixão
155. atormentam-se ou deleitam-se. Sofrem,
lutam e brigam. Entre si, mutilam-se
e perfuram-se. Essas negatividades
tornam a vida muito dolorosa.
156. Muitas vezes seres vão para estados superiores
e desfrutam de inúmeros prazeres. Mas, ao morrerem,
despencam no sofrimento dos reinos inferiores
por um tempo insuportavelmente longo.
157. Nos diversos abismos da existência condicionada,
a natureza absoluta não é realizada como
foi descrita. Lá, tudo se contradiz e
tal qualidade não aparece daquela maneira.
158. Ali, o sofrimento insuportável
e sem igual é um oceano infindável.
A força é assim mínima;
e a vida, bem curta.
159. Lá, tendo que se manter viva
e sem doença, na fome e exaustão,
dormindo ou em perigo,
na companhia de pessoas tolas,
160. a vida se esgota rapidamente sem
um sentido. Discernimento é extremamente
difícil de encontrar e, ali, que método
poderia reverter o hábito da distração?
161. Ali, forças demoníacas lutam para
derrubar os seres nos vastos reinos inferiores.
Lá, os caminhos enganados são muitos
e é difícil dissipar as incertezas.
162. Além do mais, estas liberdades são difíceis de obter,
e o surgimento de um Buda é mais raro ainda.
Abandonar a inundação de aflições não é fácil.
Que lástima, este sofrimento é contínuo!
163. Apesar de tanta dor, os seres não veem
o próprio desastre e permanecem
sendo afogados pelo sofrimento.
Que tristeza, temos que lamentar!
164. Isso é similar a alguém que entra
no fogo e se molha repetidamente.
Apesar de permanecer nesse sofrimento
intenso, ela se gaba do prazer que sente.
165. Desse modo, seres que permanecem
comportando-se como se não houvesse envelhecimento
e morte, primeiro são mortos, e depois vem
a insuportável queda nos reinos inferiores.
166. Então, quando poderei pacificar
o tormento das chamas do sofrimento,
à partir de nuvens de mérito, trazendo uma chuva
abençoada com tudo que leve conforto a eles?
167. Quando poderei, com devoção não referencial,
completar as acumulações e ensinar
esta própria vacuidade aos seres cujo
referencial é arruinar a si?
Este foi o “Capítulo 9 – Perfeição da sabedoria”, do texto Engajamento na Ação Bodisatva.