Capítulo 17 — Perfeição da sabedoria#
O resumo da perfeição da sabedoria é:
Contemplação das falhas (de não ter)
e os seus benefícios, essência, tipos,
características de cada tipo,
o que deve ser compreendido, como cultivar
e resultados. Estes sete pontos
resumem a perfeição da sabedoria.
1. Falhas da ausência de sabedoria e os seus benefícios#
Em relação à explicação do primeiro ponto, mesmo que a pessoa bodisatva possua desde persistência na paciência até a concentração, se estiver desconectada da sabedoria (prajna), não realizará a onisciência.
— Por que é assim?
Isso é como um grupo de pessoas cegas, sem alguém que as guie, que não tem como chegar à cidade desejada. Nesse sentido, o Sumário da Perfeição da Sabedoria menciona:
Como poderiam chegar à cidade
mesmo um quatrilhão de pessoas cegas,
sem guia e não conhecendo o caminho?
Sem sabedoria, as outras cinco perfeições ficam cegas;
sem essa guia, é impossível chegar à iluminação.
O contrário disso é que — assim como alguém guia um grupo de pessoas cegas à cidade — com sabedoria, a generosidade e as outras perfeições, assim como todo conjunto de virtudes, se tornam o caminho da budeidade e o nível da onisciência é realizado. Sobre isso, Introdução à Madhyamaka afirma:
Assim como um grupo cego é facilmente conduzido
até o local desejado por alguém com visão,
a sabedoria conduz as qualidades cegas
até a vitória sublime.
E o Sumário da Perfeição da Sabedoria ensina:
Através da sabedoria, a natureza dos fenômenos
é perfeitamente reconhecida,
e os Três Reinos sem exceção
são perfeitamente transcendidos.
— Então, já que a sabedoria sozinha basta, qual é a necessidade de métodos como a generosidade e tudo mais?
Ela não basta. A Tocha para o Caminho da Iluminação diz:
Foi ensinado: “Método separado da sabedoria
e sabedoria separada de método são amarras.”
Portanto, não abandone nenhum dos dois.
— Mas como são as amarras de praticar meios hábeis e sabedoria separadamente?
A pessoa bodisatva dedicada à sabedoria separada de meios hábeis, ao cair no nirvana parcial que shravakas e pratyekabudas consideram como sendo paz, é como se ela estivesse aprisionada: o nirvana sem fixação não é realizado. Além do mais, a tradição que estabelece três veículos1 afirma que esse aprisionamento é permanente. E quem estabelece um veículo único afirma que essa prisão dura 84 mil eras cósmicas extensas.
Já ao depender de meios hábeis separados da sabedoria, a condição ordinária de imaturidade não é transcendida, havendo apenas aprisionamento na própria existência cíclica. Sobre isso, o Sutra Solicitado por Akshayamati afirma:
Sabedoria separada de meios hábeis é aprisionamento no nirvana. Meios separados de sabedoria aprisionam no samsara. Por isso, é preciso combinar ambos.
O eminente Sutra dos Ensinamentos de Vimalakirti também menciona:
Para bodisatvas, o que são amarras? O que é liberação? A sabedoria que não contém meios hábeis é uma amarra. A sabedoria que contém meios hábeis é liberação. Meios que não contêm sabedoria são amarras. Meios que contêm sabedoria são liberação.
Por isso, praticar sabedoria e meios hábeis separadamente é se engajar na atividade de Mara, assim como afirma o Sutra Solicitado Pelo Rei Naga Anavatapta:
As atividades de Mara são duas: meios hábeis separados da sabedoria e sabedoria separada de meios hábeis. Ao reconhecer isso como a atividade de Mara, abandone-a.
Também há uma analogia: assim como alguém que deseja chegar na cidade precisa combinar olhos para examinar o caminho e pernas para cruzar a terra, é necessário juntar os olhos da sabedoria com as pernas do método, para rumar à cidade do nirvana sem fixação. O Sutra de Gayashurya também diz:
O caminho Mahayana se resume a duas coisas: meios hábeis e sabedoria.
Além do mais, essa sabedoria não surge naturalmente, assim como no exemplo em que um pouco de madeira queima, mas as chamas não duram muito. Já um grande monte de madeira bem seca, ao queimar, suas chamas duram muito e, mesmo tentando apagá-las, elas não se extinguem.
Da mesma maneira, com apenas um pouco de mérito, não surge muita sabedoria a partir dessa acumulação deficiente de ações. Já sobre a acumulação de imenso mérito a partir da generosidade, disciplina e tudo mais, surge vasta sabedoria, que incinera todos os obscurecimentos.
Então é em nome da sabedoria que devemos nos fundamentar na generosidade e outras perfeições. Sobre isso, Engajamento na Ação Bodisatva afirma:
Todos esses ramos dos ensinamentos
o Sábio proclamou para o cultivo da sabedoria.
2. Essência da sabedoria#
A essência da sabedoria é uma discriminação perfeita sobre os fenômenos. Nesse sentido, a Compilação do Abidharma diz:
“O que é sabedoria?” É a discriminação perfeita dos fenômenos.
3. Tipos de sabedoria#
Sobre os tipos de sabedoria, o Comentário do Ornamento dos Sutras afirma haver três aspectos: sabedoria mundana, supramundana menor e a sabedoria supramundana sublime.
4. Características de cada tipo#
Sabedoria mundana é aquela que surge com base nos quatro campos de conhecimento: o conhecimento sobre curas, sobre razão e lógica, sobre a linguagem e o conhecimento das artes.
A chamada “ciência interna2 das duas sabedorias supramundanas” é o que surge com base no Dharma sagrado.
A primeira — a sabedoria supramundana menor — é aquela que surge a partir do estudo, reflexão e meditação de shravakas e pratyekabudas, que chegam à realização de que estes agregados perpetuadores3 são impuros, fontes de sofrimento, impermanentes e sem identidade.
A segunda — a sabedoria supramundana sublime — é aquela que surge a partir do estudo, reflexão e meditação no Mahayana, com o reconhecimento de que, por natureza, todos os fenômenos são vacuidade, não nascidos, sem base e raiz. Sobre isso, o sutra Perfeição da Sabedoria em 700 Versos afirma:
Reconhecer que todos os fenômenos não têm surgimento. Isso é a perfeição da sabedoria.
E o Sumário da Perfeição da Sabedoria diz:
Reconhecer perfeitamente que todos os fenômenos não têm identidade própria — isso é se engajar na sublime perfeição da sabedoria.
Tocha para o Caminho da Iluminação menciona:
É claramente explicado que a chamada sabedoria
surge do reconhecimento da natureza de vacuidade,
a realização de que os agregados, bases sensoriais
e fatores da percepção4 são não nascidos.
5. O que deve ser compreendido#
Entre esses três tipos, aquela que deve ser compreendida é a sabedoria supramundana sublime. Para explicá-la, seis pontos são apresentados: (a) refutação da fixação na substancialidade, (b) refutação da fixação na irrealidade, © falhas da fixação na inexistência, (d) falhas da fixação em ambas, (e) o caminho que leva à liberação e (f) a natureza da liberação, nirvana.
a. Refutação da fixação na substancialidade#
Sobre o primeiro ponto, Atisha afirma em Tocha para o Caminho da Iluminação, entre mais menções sobre as investigações das proposições principais (Madhyamaka):
Não é lógico dizer que algo
(substancialmente) existente surge;
e algo não existente é como uma flor celeste.
Conforme o que é ensinado nos Estágios do Caminho, todas as coisas substanciais e a fixação nessa substancialidade estão incluídas nos dois tipos de identidade. Essas duas identidades são vacuidade por natureza, conforme o ensinamento.
— Então o que são esses dois tipos de identidade ou isso que é chamado de “mente”?
Há a “identidade pessoal” e a “identidade dos fenômenos”. Sobre essa identidade pessoal, ou mente, há muitos pontos de vista. Fundamentalmente, aquilo que é chamado de “pessoa” é o contínuo dos agregados perpetuadores, acompanhados de cognição: sempre fazendo e pensando isso e aquilo, oscilando pra lá e pra cá. Sobre isso, um sutra afirma:
O contínuo é chamado de “pessoa”;
é exatamente esta proliferação instável
(de pensamentos).
A fixação na própria pessoa como sendo permanente e única — havendo apego ao eu como sendo uma identidade — é o que é chamado de “identidade pessoal” (ou eu) e “mente”. Esse eu gera as aflições. Essas aflições geram karma. O karma gera sofrimento. Por isso, a raiz de todos os sofrimentos e erros é esse eu ou mente. Sobre isso, o Comentário Sobre Validade afirma:
Havendo eu, há a percepção de um outro.
A partir de eu e outro, há fixação e raiva.
A partir da intensa interação desses dois,
surgem todos os erros.
— E o que é essa identidade dos fenômenos?
Aquilo que é chamado de “fenômenos” se refere a: externamente, objetos apreendidos; e, internamente, a mente que apreende5.
— Por que eles são chamados de fenômenos?
Porque eles possuem características próprias. Sobre isso, um sutra afirma:
Aquilo que possui características próprias6 é chamado de “fenômeno”.
Assim, (o processo de) fixação naquilo que é percebido e naquilo que percebe — como sendo entidades reais — e o consequente apego resultam no que é chamado de “identidade dos fenômenos”.
O modo como esses dois tipos de identidade são vacuidade por natureza será explicado.
Refutação da identidade pessoal#
Sobre a refutação do primeiro tipo, a identidade (ou eu) pessoal, a Guirlanda Preciosa, composta por atcharya Nagarjuna, afirma:
Esta ideia de que “eu e meu existem”
se opõe à realidade sublime.
Isso significa que, no nível absoluto, esse eu não existe. Caso o eu ou a mente existam no nível absoluto, no momento em que a realidade é reconhecida, eles também deveriam estar ali. Mas para a mente que enxerga a realidade, no momento em que a essência é reconhecida, esse eu não está lá; então, não existe. Nesse sentido, a Guirlanda Preciosa também menciona:
Por isso, ao reconhecer perfeitamente o absoluto
assim como ele é, esses dois não surgem.
Nessa passagem, “o absoluto assim como ele é” se refere a ver ou compreender a realidade. “Esses dois não surgem” é o não surgimento da fixação em “eu e meu”.
Além do mais, no caso de esse eu ou mente existirem, é preciso examinar se isso surge naquilo que é chamado de “surgimento de si, de outro, de ambos, ou nos três tempos”.
O eu não surge de si porque ou ele já existe, ou não. Caso ainda não exista, ele não pode ser a causa (do surgimento). Caso já exista, não pode ser (seu próprio) resultado7. Assim, algo que produz a si mesmo é uma contradição.
O eu também não surge de outro porque isso não é uma causa. Por que não é uma causa? Devido ao seguinte: uma causa depende de um resultado. Enquanto não surge um resultado, não há uma causa. E enquanto não há uma causa, não há resultado — como no argumento anterior8.
O eu também não surge de ambos porque, como foi explicado, ambos argumentos são falhos.
Também não surge nos três tempos. Não surge no passado porque o passado é como uma semente podre, cujo potencial foi extinto. Um surgimento no futuro seria como a criança de uma pessoa estéril. Um surgimento no presente é ilógico porque causa e resultado seriam simultâneos9. Nesse sentido, a Guirlanda Preciosa afirma:
Já que isso não é obtido de si,
de outro, de ambos, ou dos três tempos,
a fixação no eu se extingue.
Nessa passagem, “não é obtido” significa “não surge”.
Alternativamente, a refutação da identidade pessoal deve ser compreendida assim: examine se esse “eu” existe no próprio corpo, na mente ou em um nome.
Este corpo é formado pelos quatro elementos: sua solidez é o elemento terra, a umidade é água, calor é fogo, respiração e movimento são o elemento vento. Esses quatro elementos não possuem um eu ou mente, assim como a terra, água e tudo mais (os quatro elementos do mundo externo) não possuem um eu ou mente.
— Mas a mente possui um eu.
A mente não tem nenhuma existência, já que a própria pessoa ou outra nunca a viram. Então, já que a mente não existe de fato, o eu também não.
— O eu ou a mente existem em um nome?
Um nome é algo dado de modo arbitrário; não tem substância e nenhuma ligação com o eu.
Assim, através desses três argumentos, também é demonstrado que a identidade pessoal ou da mente não têm existência inerente.
Refutação da identidade dos fenômenos#
Já a refutação da identidade dos fenômenos se divide em duas: a demonstração de que objetos apreendidos externamente não têm existência, e a de que a mente apreendida internamente também não tem.
Objetos apreendidos externamente
Sobre a explicação do primeiro ponto, há quem afirme a existência substancial de objetos apreendidos externamente.
Por exemplo, a tradição Vaibashika diz que partículas diminutas arredondadas e indivisíveis existem como substância. A reunião delas forma objetos como formas visuais e dos outros sentidos. Quando se reúnem em torno umas das outras, há um intervalo entre elas, mas aparentam ser uma coisa só — por exemplo, como um rabo de iaque ou um prado. Sua não separação é mantida pelo karma de seres sencientes.
Já a tradição Sautrantika afirma que, ao se aglomerarem, não há nenhum intervalo, mas as partículas não se tocariam mesmo assim.
Há essas posições, mas elas não procedem, porque cada uma dessas partículas ou existe de modo singular ou múltiplo. Caso seja singular, tal partícula se divide em direções ou não. Caso haja direções, há seis partes: leste, oeste, norte, sul, acima e abaixo. Isso acaba com a afirmação de que ela é singular.
Caso não haja divisão em direções, todas as coisas teriam que existir como uma única partícula10, mas também não é assim, o que é bastante óbvio, assim como menciona o texto Vinte Estrofes (de Vasubandhu):
Caso haja seis (lados) para aquilo que é um,
essa parte diminuta se transforma em seis.
Caso esses seis sejam a mesma coisa,
(toda) a aglomeração se resume a uma partícula.
— Mas elas são muitas.
Caso a existência de uma partícula procedesse, seria razoável que a reunião delas formasse multiplicidades. Mas se a existência de uma única partícula não procede, um conjunto de diversas também não. Portanto, já que partículas não existem como algo substancial, esses objetos que seriam constituídos por elas também não existem (inerentemente).
— Então o que é isso que está bem aqui agora aparecendo obviamente?
Isso é a confusão da própria mente, aparecendo como um objeto externo; já que é a própria mente surgindo assim, é uma aparência.
— Como saber se é assim de fato?
Isso deve ser compreendido através das escrituras, da lógica e por analogia.
Sobre as escrituras, o Sutra Ornamento de Flores afirma:
Descendência de Budas, escutem! Estes três mundos são apenas mente.
O Sutra da Jornada a Lanka também ensina:
Devido à mente agitada por padrões habituais,
aparências surgem intensamente,
mas elas não têm realidade. Ver a própria mente
como uma realidade externa é um erro.
O argumento usando lógica (sobre fenômenos serem a mente) é o seguinte. (Sujeito:) estas aparências externas (proposição:) são percepções ilusórias da mente, (razão:) porque aquilo que não existe aparece como se existisse11. Desse modo, já que isso não aparece do modo como é12, acaba sendo uma aparência13. Conforme o tipo de ser, há uma aparência diferente14. Então estas aparências são apenas confusões da mente.
Os exemplos para isso são: sonhos, ilusões mágicas etc.
Estes argumentos demonstram que objetos apreendidos externamente não têm existência (inerente).
Mente apreendida internamente
Sobre a explicação do segundo ponto (na refutação da identidade dos fenômenos), algumas pessoas15 consideram a mente apreendida internamente como sendo inerentemente existente, tendo consciência e clareza sobre si mesma. Apesar dessas afirmações, isso não procede por três motivos:
-
Ao examinar os instantes dessa mente, ela não existe.
-
Já que ela nunca foi vista por ninguém, não tem existência substancial.
-
Já que não há objetos, ela não existe.
Instantes da mente
Sobre o primeiro motivo, “essa mente (inerentemente existente) autoconsciente e autoiluminadora que você estabelece existe em um instante ou em múltiplos?”
— Ela existe em cada instante.
Então, sobre esse instante, ou ele é dividido em três tempos ou não. No primeiro caso (em que há divisão por três), o instante não é singular, resultando na impossibilidade de haver múltiplos instantes16. Sobre isso, a Guirlanda Preciosa afirma:
É preciso examinar se, do mesmo modo
como um instante tem um fim, há um começo e meio17.
Assim, já que um instante é caracterizado
por três partes, o mundo não reside em um instante18.
Já se o instante não tiver três tempos, a consequência é que ele não tem realidade. Portanto, já que um instante não tem existência inerente, a mente também não.
— Então a mente existe em múltiplos instantes.
Caso a existência de um instante procedesse, seria razoável a existência da soma de diversos; mas já que um instante não procede, a acumulação de vários também não. Como diversos instantes não existem inerentemente, a mente também não.
A mente nunca foi vista
Sobre a explicação do segundo motivo (“a mente nunca foi vista”, na refutação da existência inerente da mente), procure onde reside isso que é chamado de “mente”: dentro do corpo, fora, no meio, no alto ou embaixo. Investigue bem qual é a forma ou cor que ela possui. Procure até chegar a uma certeza. Investigue conforme aprendeu nas instruções orais — por exemplo, como alternar entre a sequência de contemplações etc.
Caso, por mais que procure, não veja nem encontre nada, sem o menor sinal de alguma forma, cor ou característica, não é que ela existe, mas você não viu ou achou. Aquilo que investiga é exatamente o que está sendo investigado, e essa investigadora está além do intelecto de cada pessoa. Já que isso transcende os objetos da fala, reflexão e conhecimento, por mais que seja procurada, jamais é vista, assim como ensina o Sutra Solicitado por Kashyapa:
Kashyapa, a mente não está dentro, também não está fora e não pode ser vista entre ambos. Kashyapa, a mente não pode ser examinada, mostrada, encontrada, não aparece, não é discernida e não reside. Kashyapa, mesmo todos os budas não a viram, não veem e não a verão.
E o Sutra da Compreensão Perfeita do Dharma diz:
Após reconhecer gradual e completamente
o modo como a mente é falsa e vazia,
não há fixação nela como uma essência.
Esses fenômenos têm uma natureza vazia;
por natureza, são fenômenos vazios,
não têm existência inerente.
Todos os fenômenos são rótulos
— ensinei inteiramente essa natureza.
Prevalecendo sobre os dois extremos,
pessoas sábias se engajam na natureza central.
Fenômenos vazios em essência:
esse é o caminho da iluminação,
que também ensinei.
O Sutra da Realidade Inabalável ainda afirma:
Todos os fenômenos são não nascidos por natureza, não residem (em nenhum lugar) por essência, livres de todos os extremos de ação e atividade, transcendendo o domínio do pensamento e não pensamento.
Já que ninguém nunca viu a mente, não há sentido em falar sobre autoconsciência e autoiluminação. Engajamento na Ação Bodisatva menciona:
Se a mente jamais é vista por ninguém,
não há sentido em discutir se ela
autoilumina-se ou não. Seria como falar
da beleza da filha de uma pessoa estéril.
Tilopa também diz (no Tesouro de Canções):
Que maravilha!
Isto é a sabedoria primordial autorreflexiva.
Está além do caminho da fala,
não é um objeto intelectual.
Não há objetos
Sobre a explicação do terceiro motivo (“não há objetos”, na refutação da existência inerente da mente), já que formas visuais e dos outros sentidos não têm existência — como explicado antes — a mente que as apreende internamente também não tem, assim como afirma o Sutra que Demonstra a Natureza Inseparável do Dharmadhatu:
Examine se essa mente é azul, amarela, vermelha, branca, vermelho-escuro ou transparente; se é pura ou impura; permanente ou impermanente; se tem forma ou não. A mente não tem forma, não pode ser mostrada, não aparece, não pode ser obstruída. Já que não é um objeto da cognição, não reside internamente, externamente ou entre ambos. É completamente pura, totalmente inexistente. Nela, não há nada para liberar, sendo a própria natureza do Dharmadhatu.
E Engajamento na Ação Bodisatva menciona:
Quando não há um objeto da consciência, ela é o quê?
Por que é chamada de consciência?
E também:
Assim, é certo dizer que não há
consciência sem um objeto diante dela.
Esses (três) pontos demonstram que a mente apreendida internamente não tem existência inerente, concluindo a refutação da fixação na substancialidade.
b. Refutação da fixação na irrealidade#
Sobre a refutação do segundo ponto (a irrealidade), poderia ser perguntado:
— Já que os dois tipos de identidade não existem como nenhuma entidade, então são irreais?
Sua irrealidade também não procede.
— Por que não?
Caso essas duas identidades, ou a mente, antes tivessem substancialidade e, depois, deixassem de existir, teria sentido falar em “ausência”. Mas já que as duas identidades, ou a mente, são primordialmente inexistentes por natureza, elas transcendem os extremos de existir como substância ou não. Saraha afirmou (Canção de Instruções de um Tesouro Inexaurível):
Quem se fixa na substancialidade é como gado;
já se fixar na irrealidade é algo ainda mais tolo.
O Sutra da Jornada a Lanka também ensina:
Coisas externas não são existentes nem inexistentes.
A mente também não é apreendida de fato.
O abandono total de todas as visões
— essa é a característica do não nascido.
E a Guirlanda Preciosa menciona:
Quando algo real não é encontrado,
como é possível haver sua ausência?
c. Falhas da fixação na inexistência#
Na explicação do terceiro ponto (fixação na inexistência), poderia ser perguntado:
— Então se a raiz do samsara é a fixação na existência de objetos, caso eles sejam considerados inexistentes, deve haver liberação do samsara, não?
Essa visão é ainda mais falha que a anterior, assim como disse Saraha:
Quem se fixa na substancialidade é como gado;
já se fixar na irrealidade é algo ainda mais tolo.
Do mesmo modo, o capítulo “Monte de Joias” (do Sutra Solicitado por Kashyapa) afirma:
Kashyapa, é fácil lidar com a visão (sobre a realidade) pessoal, mesmo que seja como o Monte Meru; já a visão intensa e orgulhosa sobre a vacuidade é diferente.
Também diz:
Visões falhas sobre a vacuidade
serão a ruína de quem tem pouca sabedoria.
E os Versos-Raiz da Sabedoria contêm:
As pessoas que acreditam na vacuidade
são incuráveis, conforme ensinado (pelo Buda).
— Como elas são incuráveis?
Por exemplo, ao aplicar um remédio purgante, quando tanto a doença quanto o purgante são purificados, a doença é curada. Se a doença é removida, mas o purgante não se dissolve, a cura do paciente é impossível, e ele pode morrer.
Do mesmo modo, essa visão da substancialidade da realidade é expelida através da familiarização com a vacuidade. No entanto, ao considerar com apego a vacuidade, a pessoa que tem esse vazio ficará vazia, inclinando-se para os destinos inferiores. A Guirlanda Preciosa também menciona:
Crentes na existência vão para destinos superiores.
Crentes na inexistência vão para destinos inferiores.
Assim, comparada à visão anterior, a última é uma falha mais grave ainda.
d. Falhas da fixação nas duas crenças#
O quarto ponto é a explicação das falhas da fixação em ambas. Na verdade, a fixação em ambas — a substancialidade e a irrealidade — é falha porque isso é cair nos extremos do niilismo e eternalismo. Os Versos-Raiz da Sabedoria afirmam:
“Existe” é a visão do eternalismo.
“Não existe” é a visão do niilismo.
A queda nos extremos do eternalismo e do niilismo é ignorância. Com ignorância, não haverá libertação da existência cíclica. Nesse sentido, a Guirlanda Preciosa também menciona:
É ignorância a fixação que diz
“existe” ou “não existe” sobre esse mundo
que é como uma miragem.
Com ignorância, não há liberação.
e. O caminho que leva à liberação#
Na explicação do quinto ponto, poderia ser perguntado:
— Então como se libertar?
Através do caminho do meio, que não se fixa em extremos, há liberação, como afirma a Guirlanda Preciosa:
Quem reconhece perfeitamente a realidade como ela é19,
sem se basear nesses dois20, se liberta21.
Também diz:
Assim, quem não se baseia nesses dois22 se liberta.
Os Versos-Raiz da Sabedoria também ensinam:
Por isso, pessoas instruídas
não ficam na existência ou inexistência.
— Mas como é esse centro que abandona os dois extremos?
A eminente escritura Monte de Joias (no Sutra do Capítulo que Ensina os Três Votos) afirma:
Kashyapa, de que modo bodisatvas abordam os fenômenos? Assim: no caminho do meio, cada um dos fenômenos é perfeitamente discriminado. Kashyapa, o que é o caminho do meio da discriminação dos fenômenos? É assim, Kashyapa: a “permanência” é um extremo, a “impermanência” é o segundo extremo. O que está no meio desses dois extremos não pode ser examinado, demonstrado, não aparece, nem é discernido. Kashyapa, isso é chamado de “caminho do meio que discrimina perfeitamente os fenômenos”. Kashyapa, o “eu” é um extremo, o “não eu” é o segundo extremo...
E assim por diante, como antes, até:
Kashyapa, esse “samsara” é um extremo, esse “nirvana” é o segundo extremo. O que está no meio desses dois extremos não pode ser examinado, demonstrado, não aparece, nem é discernido. Kashyapa, isso é chamado de “caminho do meio que discrimina perfeitamente os fenômenos”.
Shantideva também ensina (Engajamento na Ação Bodisatva):
A mente não está dentro ou fora,
e em nenhum outro lugar é encontrada.
Aquilo que não se funde com o corpo,
e nem é algo separado, não é nada.
Por isso, a natureza dos seres
está além do sofrimento: nirvana.
Desse modo, mesmo não concebendo os dois extremos no caminho do meio, esse centro em si não é algo a ser examinado: em absoluto, está livre da consciência que se fixa nisso, permanecendo além do intelecto. Atisha também ensinou (em Instruções Madhyamaka):
Então a mente passada, sendo interrompida, cessou. A mente futura, não tendo nascido, não surgiu. A mente presente é extremamente difícil de examinar: não tem cor nem forma, não tem existência concreta, como o espaço.
E o Ornamento da Realização menciona:
Não permanecendo nos extremos deste lado,
do outro, ou entre ambos. Já que reconhece
todos os tempos com igualdade,
ela é estabelecida como a perfeição da sabedoria.
f. A natureza da liberação#
Na explicação do sexto ponto (a natureza da liberação, nirvana) poderia ser perguntado:
— Já que todos os fenômenos do samsara não têm existência inerente como coisas substanciais ou insubstanciais, então isso que é chamado de “nirvana” é substancial ou insubstancial?
Algumas pessoas dedicadas a esse ponto consideram que o nirvana é algo substancial. Mas não é, assim como diz a Guirlanda Preciosa:
Se o nirvana não é nem mesmo irreal,
como poderia ser algo substancial?23
Caso o nirvana tivesse substância, seria algo composto. Sendo composto, se desintegraria no final. Por isso, os Versos-Raiz da Sabedoria afirmam, entre mais menções:
Se o nirvana tivesse substância,
o nirvana seria composto.
E também não é insubstancial, assim como diz esse texto:
Não há nada de insubstancial nele.
— Então como é?
O esgotamento de todos pensamentos que se fixam nisso como sendo substancial ou insubstancial, transcendendo o intelecto e livre de expressões verbais — isso é chamado de “nirvana”. Nesse sentido, a Guirlanda Preciosa menciona:
O esgotamento da fixação na realidade
ou inexistência é chamado de nirvana.
E Engajamento na Ação Bodisatva ensina:
Quando tanto um fenômeno quanto sua não existência
não permanecem diante da mente, não há
outra opção senão a pacificação
completa, livre de fixações.
O eminente Sutra Solicitado por Brahma também afirma:
O que é chamado de “nirvana completo” é a pacificação total de todas as características, livre de todas oscilações.
E o Lótus Branco do Dharma Sagrado diz:
Kashyapa, internalizar a igualdade de todos os fenômenos é o nirvana.
Desse modo, além da mera pacificação do engajamento mental, o nirvana não existe como nenhum fenômeno que surge ou cessa, que é abandonado ou obtido etc. Nesse sentido, os Versos-Raiz da Sabedoria afirmam:
Não é abandono, não é obtenção,
não é niilismo, não é eternalismo,
não cessa, não surge: isso é o nirvana.
Já que, assim, não há nenhum surgimento, cessação, abandono, ganho etc, o nirvana não é algo que a própria pessoa cria, fabrica ou transforma. Sobre isso, o Sutra do Precioso Espaço diz:
Nele, não há absolutamente nada para remover,
não há nem um mínimo para adicionar.
Veja perfeitamente a verdade perfeita.
Ao ver perfeitamente, há liberação.
Essas expressões — como “reconhecer a própria mente ou sabedoria” — se referem ao contexto da investigação analítica. Mas o significado de sabedoria ou mente está além da cognição ou expressão verbal, assim como é ensinado (no Sutra Solicitado por Suvikrantavikrami):
A perfeição da sabedoria não pode ser descrita por nenhum fenômeno, transcendendo todas as palavras.
O Louvor de Rahula à Mãe também afirma:
Perfeição da sabedoria inexprimível,
inimaginável e indescritível. Não nascida,
ininterrupta, a própria essência do espaço,
sendo o domínio da sabedoria primordial,lucidez reflexiva discriminativa.
Eu me curvo à mãe dos vitoriosos dos três tempos.
Isto conclui a explicação sobre o que deve ser compreendido em relação à sabedoria.
6. Como cultivar a sabedoria#
Agora, vem a explicação sobre como cultivar essa sabedoria ou mente.
— Mas se todos os fenômenos são vacuidade, é preciso cultivar qualquer um desses reconhecimentos?
Sim, é preciso. Por exemplo, minério de prata é constituído de prata, mas enquanto não for derretido e purificado, a prata não aparece. Quem deseja prata derretida precisa derreter e purificar esse minério.
Do mesmo modo, todos os fenômenos são, primordialmente, vacuidade por natureza, livres de todas fabricações. No entanto, já que eles aparecem para seres sencientes como sendo diversas realidades materiais, e diversos sofrimentos são vivenciados, é preciso cultivar esse reconhecimento.
Então, reconhecendo o que foi explicado antes, meditar nisso envolve quatro pontos: preliminares, repouso em meditação, pós-meditação e sinais da prática.
Preliminares#
Deixe a mente em seu estado natural24. Como fazer isso? A escritura Perfeição da Sabedoria em 700 Versos ensina, entre mais menções:
Filhas e filhos de sublime descendência, é preciso usar o assento do caminho de isolamento. É preciso regozijo na ausência de ocupações mundanas, sentando-se de pernas cruzadas, sem engajamento mental com qualquer característica conceitual.
Isso deve ser feito conforme as preliminares do Mahamudra25.
Repouso em meditação#
Depois, os métodos para a meditação também são os da tradição de instruções Mahamudra, repousando a mente sem absolutamente nenhum conceito sobre existência e inexistência, adotar e rejeitar, livre de esforço. Sobre isso, Tilopa ensinou:
Sem imaginar, considerar e analisar,
não meditando nem pensando,
deixe a mente repousar naturalmente.
Descanse também na mente em si:
Ouça, criança: qualquer conceito que surgir para você,
aqui não há um eu aprisionado ou liberado.
Viva! Repouse da exaustão, sem distração,
sem fabricar, espontaneamente.
Nagarjuna também disse:
A mente bem posicionada, como um elefante treinado,
pára de ir pra lá e pra cá, repousando naturalmente.
É isso que realizei, então preciso de qual ensinamento?
E também:
Não fixe conceitos em nenhum lugar, não imagine absolutamente nada. Não corrija. Repouse naturalmente. A não fabricação é o tesouro natural não nascido,
o eminente caminho dos vitoriosos dos três tempos.
O soberano dos retiros nas montanhas (mahasiddha Shavaripa) também ensinou:
Não olhe as falhas de ninguém.
Pratique aquilo que não é absolutamente nada.
Não deseje coisas como sinais de realização etc.
Embora não haja nada sobre o que meditar,
não caia na influência da indolência e indiferença.
Continuamente, cultive a lembrança.
A Realização do Objetivo da Meditação afirma:
Quando meditar, não medite em absolutamente nada;
“meditação” é apenas uma convenção verbal.
Saraha também ensinou (Tesouro de Canções):
Se houver apego a algo, abandone.
Quando há realização, tudo é ela.
Além disso, não há nada mais
que alguém saberá.
Atisha também menciona (Canção da Visão do Dharmadhatu):
Profunda e livre de fabricações
é a qualidade daquilo que é26.
Lucidez clara, não composta.
Não nascida, ininterrupta, primordialmente pura.
Nirvana natural, dharmadhatu
sem extremidade ou centro.
Veja com o preciso olho mental
livre de conceitos, sem excitação, torpor ou distorção.
Também diz:
Solte o reconhecimento na liberdade sobre fabricações,
no dharmadhatu livre de fabricações.
Tal repouso é o método sem falha para cultivar a perfeição da sabedoria. Nesse sentido, a escritura Perfeição da Sabedoria em 700 Versos afirma:
Não adotar, se fixar ou abandonar qualquer fenômeno; essa é a meditação na perfeição da sabedoria. Não permanecer em nenhum lugar; isso em si é a meditação na perfeição da sabedoria. Não imaginar nada, sem nenhum alvo; isso é a meditação na perfeição da sabedoria.
A eminente Perfeição da Sabedoria em Oito Mil Versos menciona:
Esse cultivo da perfeição da sabedoria é não meditar em nada.
O mesmo sutra também diz:
O cultivo da perfeição da sabedoria é meditar no espaço.
— Mas como é meditar no espaço?
Esse sutra acrescenta:
O espaço é de fato não conceitual.
A perfeição da sabedoria é de fato não conceitual.
O Sumário da Perfeição da Sabedoria ensina:
Não conceber nenhum dos dois:
não surgimento e surgimento.
Isso é a prática da sublime perfeição da sabedoria.
O mestre espiritual Vagisvara pronunciou (em Instruções Para Enganar a Morte):
Não imagine o imaginável,
não imagine o inimaginável.
Ao não imaginar o imaginável
nem o inimaginável, a vacuidade é vista.
— Como é ver a vacuidade?
É como foi dito no Sutra que Reúne Perfeitamente as Qualidades:
Ver a vacuidade é não (haver o processo de) ver.
E também:
Bhagavan, não ver todos os fenômenos é a visão perfeita.
Também diz:
Não ver nada é ver tal qualidade.
O Comentário Curto da Validade Madhyamaka também afirma:
Sutras muito profundos proclamam que
não ver é ver isso (a vacuidade).
O Sumário da Perfeição da Sabedoria também diz:
Seres realmente falam que “veem o espaço”.
Examine como é ver o espaço.
O Tathagata ensinou a ver os fenômenos desse modo.
Pós-meditação#
(No terceiro ponto sobre como cultivar a sabedoria,) veja tudo no pós-meditação como uma ilusão mágica e acumule o máximo de mérito que puder, através da generosidade e das outras perfeições. Nesse sentido, o Sumário da Perfeição da Sabedoria afirma:
Quem reconhece os Cinco Agregados
como similares a uma ilusão mágica,
não tornando a ilusão e os agregados
diferentes uns dos outros,livre da percepção de diversas coisas,
desfrutando de paz, pratica assim
a perfeição da sabedoria.
O Sutra Rei do Samadhi também menciona:
Assim como ilusionistas emanam formas
— criando diversas coisas como cavalos,
elefantes e carruagens —
sem que haja nenhuma realidade
no modo como aparecem,
reconheça todos os fenômenos
como sendo similares a isso.
E a escritura Tal Qualidade na Conduta afirma:
Apesar de haver atenção mental com o não conceitual,
a continuidade da acumulação de mérito não é cortada.
Cultivando tal familiarização, a meditação e o pós-meditação tornam-se inseparáveis, havendo liberação em relação ao orgulho. Sobre isso, é dito (no Sumário da Perfeição da Sabedoria):
Não há o surgimento desse orgulho: “Eu repouso em meditação!”. Por que não? Porque há o reconhecimento perfeito da natureza dos fenômenos.
Permanecer apenas um curto período dentro de tal perfeição da sabedoria — a realidade absoluta da vacuidade — gera um mérito ilimitadamente maior do que ouvir e recitar o Dharma, ou praticar virtudes fundamentais como a generosidade e as outras perfeições por toda uma era cósmica. Nesse sentido, o Sutra que Ensina Tal Qualidade afirma:
Shariputra, alguém que medita no samadhi da qualidade daquilo que é durante um mero estalar de dedos tem uma expansão de mérito maior do que estudar o Dharma por uma era cósmica. Por isso, Shariputra, sempre ensine a outros seres o samadhi de tal qualidade. Shariputra, todas bodisatvas profetizadas como budas permanecem exclusivamente nesse samadhi.
O Sutra do Crescimento da Grande Realização também diz:
É mais significativa a concentração meditativa
momentânea em uma sessão de meditação
do que doar a vida para os seres dos três mundos.
E o Sutra do Grande Ushnisha menciona:
Há mais mérito em cultivar o Dharma absoluto por um dia do que estudar e refletir por diversas eras cósmicas. “Por que é assim?” Porque isso afasta a pessoa para bem longe do caminho do nascimento e morte.
O Sutra do Engajamento na Fé também ensina:
Uma pessoa iogue que medita na vacuidade por uma sessão gera mais mérito do que se os seres sencientes do três mundos passassem a vida toda usando seus meios de vida para acumular mérito.
Caso a mente não permaneça no significado da vacuidade, outras virtudes não realizarão sua liberação, conforme é ensinado no Sutra que Demonstra o Não Surgimento dos Fenômenos:
Mesmo protegendo a disciplina por muito tempo,
mantendo concentração meditativa
por dezenas de milhões de eras cósmicas,
sem realizar esta perfeita verdade final,
esses suportes não trazem liberação.
Quem reconhece este ensinamento
sobre absolutamente nada,
jamais se apegará a nenhum fenômeno.
E a escritura Dez Rodas de Kshitigarbha afirma:
Através do cultivo de samadhi, incertezas são cortadas;
fora isso, nada mais tem esse poder.
Portanto, o cultivo de samadhi é supremo;
Pessoas instruídas se empenham nisso.
O mesmo texto também menciona:
Meditar por um dia gera mais mérito do que transcrever o Dharma, ler, ouvir, explicar e recitá-lo por uma era cósmica.
Não há nenhum outro ensinamento que não esteja incluído no Dharma que contém esses pontos-chave da vacuidade.
Isso (o Dharma da vacuidade) também é sobre abrigar-se no refúgio, como afirma o Sutra Solicitado por Anavatapta:
Bodisatvas reconhecem que todos esses fenômenos não têm identidade, não têm seres sencientes, não têm uma essência vital, não têm personalidade. O modo como tathagatas enxergam de modo absoluto — sem ver as coisas como sendo formas, como tendo características próprias, ou como fenômenos — é abrigar-se no refúgio do Buda, com a mente sem fixação na materialidade.
Aquilo que é a natureza essencial de tathagatas é o dharmadhatu. Aquilo que é o dharmadhatu é “o que permeia todos os fenômenos”; enxergar isso que permeia todos os fenômenos é abrigar-se no refúgio do Dharma, com a mente sem fixação na materialidade.
Quem se familiariza com o dharmadhatu como sendo não composto, baseando-se no fato de que a base do shravakayana é não composta, sem a dualidade de composto e não composto, isso é abrigar-se no refúgio da Sangha, com a mente sem fixação na materialidade.
Isso também é a própria geração da mente do despertar, como diz o Sutra do Grande Cultivo da Boditchita:
Kashyapa, todos os fenômenos são como espaço, não têm características, sendo lucidez primordial completamente pura. Isso é a “geração da mente do despertar”.
Também é ensinado que isso (a realização da sabedoria) contém plenamente a meditação na deidade do estágio da criação e a recitação de mantra.
— Onde isso é ensinado?
No Tantra Hevajra:
Não há meditação nem meditador.
Também não há deidade nem mantra.
Na natureza livre de fabricações,
deidade e mantra residem perfeitamente:
Vairotchana, Akshobya, Amoghasiddhi,
Ratnasambhava, Amitabha e Vajrasattva27.
O tantra União de Budas menciona:
Ioga (união) não vai surgir
de coisas como estátuas moldadas.
Mas a partir da dedicação intensa na boditchita,
a pessoa iogue se transforma na deidade.
E o tantra Ponta do Vajra diz:
Todos os mantras se caracterizam
como sendo a mente de todos os budas,
sendo o que realiza a essência do Dharma.
A característica de mantras é ensinadacomo sendo a posse perfeita do dharmadhatu.
Isso também contém a oferenda ao fogo28, como afirma o Tantra Rei do Néctar Secreto:
Qual o propósito de queimar oferendas?
Oferendas são queimadas para
a concessão de siddhis sagrados
e a destruição de conceitos;
então queimar madeira e tudo mais
não é a (verdadeira) oferenda ao fogo.
O caminho das Seis Perfeições também está todo aí, conforme menciona o Sutra do Samadhi Vajra:
Se não houver oscilação em relação à vacuidade,
isso contém as Seis Perfeições.
O Sutra Solicitado por Brahma Vishesacinti também diz:
Não imaginar é generosidade. Não permanecer em separação é disciplina. Não fazer distinções é paciência. Não adotar e rejeitar é diligência. Não se apegar é concentração. Ausência de conceitos é sabedoria.
E o Sutra de Kshitigarbha ensina:
Pessoas instruídas no cultivo do Dharma da vacuidade
mantêm pura disciplina, não dependendo
nem se fixando em nada no mundo, e não permanecendo em nenhum lugar da existência condicionada.
A mesma escritura também afirma:
Há imensos benefícios na paciência da mente pacificada com a realização de que todos os fenômenos têm um só sabor — sendo vazios e sem características próprias —, não se fixando nem se apegando a nada.
Pessoas instruídas que aplicam diligência jogaram longe todos apegos. A mente que não se fixa nem se apega a nada deve ser conhecida como o “puro campo de mérito”.
Cultivar samadhi para o conforto e benefício de todos seres sencientes é visto como uma carga pesada29, então essa dissipação de todas aflições é a característica de pessoas realmente sábias.
Isso (a visão de sabedoria) também é uma reverência (ou prostração), conforme o Sutra do Espaço Precioso:
Assim como água colocada na água,
ou manteiga, na manteiga,
ao ver perfeitamente
esta sabedoria de lucidez reflexiva,
há uma reverência a ela.
Além do mais, quando há essa sabedoria, isso também é uma oferenda, como diz o Sutra do Encontro da Criança com o Pai:
Fundamentar-se no Dharma da vacuidade
e aspirar pelo domínio experiencial da budeidade.
Isso é uma oferenda ao Professor,
e essa oferenda é insuperável.
E o Tantra do Néctar Secreto também ensina:
Agradáveis (para budas) são oferendas significativas,
mas oferecer coisas como incenso não agrada.
Tornar a própria mente trabalhável
é a grande oferenda que deleita.
Além disso, quando há essa sabedoria, isso também é confissão e purificação de desvirtudes, assim como afirma o Sutra da Completa Purificação de Karma:
Quem deseja confessar e purificar,
sente-se de maneira reta e olhe a verdade perfeita.
Enxergar perfeitamente a verdade
é a melhor purificação por arrependimento.
A proteção de compromissos sagrados (samaya) e da disciplina também está toda contida aí, conforme o Sutra Solicitado por Devaputra:
Para quem não tem o orgulho sobre ter votos ou não, essa é a disciplina do nirvana, é a disciplina pura.
E o Sutra das Dez Rodas menciona:
Poderia ser dito que uma pessoa não recebeu os votos de disciplina quando mora em uma casa, não raspando os cabelos nem vestindo os mantos monásticos. Mas se tem a (realização da) natureza dos fenômenos de seres eminentes, ela é a renunciante absoluta.
Além do mais, os três estágios de ouvir, refletir e meditar também estão completos aí, como afirma o Tantra da Absoluta Não Fixação:
Ao se alimentar com a comida
da verdade não fabricada,
isso satisfaz todas as doutrinas filosóficas.
Pessoas imaturas sem realização
dependem de terminologias.
Tudo são características da própria mente.
Saraha também afirmou (Tesouro de Canções):
Isso (a realização da vacuidade) é ler escrituras, compreender e meditar.
Também é explicar shastras de memória.
Não há uma visão que a ilustre.
Esse ponto também inclui oferendas de tormas e atividades rituais, como menciona o Tantra Rei do Néctar Secreto:
Oferendas de tormas e tudo mais,
todas as diversas atividades.
Ao encontrar a mente em si,
tudo isso certamente está incluído.
— Mas então, se meditar apenas na essência ou natureza da mente inclui tudo isso, como surgiram esses ensinamentos sobre tantos métodos graduais?
Isso é para guiar as pessoas com menos fortuna que estão confusas sobre o estado natural, assim como diz o Sutra Ornamento da Manifestação de Sabedoria Primordial:
A explicação sobre causas, condições,
interdependência e o ensinamento
sobre a prática em estágios
foram pronunciados como métodos
para pessoas confusas.
Que tipo de treinamento em estágios haveria
para este Dharma da perfeição espontânea?
O tantra Surgimento de Tchakrasamvara afirma:
Desse modo, há uma identidade similar ao espaço,
uma identidade de liberação eterna.
E o Sutra do Espaço Precioso menciona:
Até a entrada no oceano do dharmadhatu,
se fala em níveis e caminhos distintos.
Após a entrada no oceano do dharmadhatu,
não há o menor traço de níveis e caminhos a percorrer.
Atisha também ensinou (em Tocha que Sumariza a Conduta):
Se a mente tiver firmeza na meditação única,
não faça das virtudes de corpo e fala
a prática principal.
Sinais da prática#
Os sinais do cultivo da sabedoria (o quarto e último ponto sobre como cultivá-la) são: há cuidado com a virtude, aflições diminuem, surge compaixão por seres sencientes, há aplicação dedicada na prática, todas distrações são abandonadas e não há apego e fixação com esta vida30. Por isso, a Guirlanda Preciosa ensina, entre mais menções:
Através da meditação na vacuidade,
o cuidado com a virtude é obtido.
7. Resultados#
Os frutos da perfeição da sabedoria devem ser entendidos como sendo dois: o resultado final e o provisório.
O resultado final é a realização da iluminação insuperável, como é mencionado em Perfeição da Sabedoria em 700 Versos:
Manjushri, ao se engajar na perfeição da sabedoria, grandes seres bodisatvas rapidamente realizam a
iluminação insuperável perfeita, completa e manifesta.
O resultado provisório é que surgirá toda felicidade e bem-estar, como é ensinado no Sumário da Perfeição da Sabedoria:
Quaisquer bem-estar e felicidade encontradas pela descendência de budas, por shravakas, pratyekabudas, seres divinos e todos os seres, isso tudo surge a partir da sublime perfeição da sabedoria.
Este foi o “Capítulo 17 – Perfeição da sabedoria”, do Ornamento da Liberação Preciosa, o Dharma Sagrado que é Como Uma Joia que Realiza Desejos.
1 “Três veículos” se referem às três abordagens para o caminho budista: a de shravakas e pratyekabudas, o Mahayana e o Vajrayana. Algumas tradições — como certos sutras Mahayana ou práticas Vajrayana — mencionam um veículo único, no sentido de que todas as abordagens fazem parte de um único caminho. Essas duas visões estão presentes no budismo tibetano e, no final, não se contradizem.
2 “Ciência interna” (tib.: nang rig pa) é um sinônimo para sabedoria budista.
3 “Agregados perpetuadores” se referem aos Cinco Agregados, que perpetuam o samsara atuando como sua causa substancial.
4 Os Cinco Agregados, 18 Bases Sensoriais e 12 Fatores da Percepção são conjuntos que subdividem corpo, mente e percepção para demonstrar a vacuidade de um sujeito que experimenta o mundo.
5 “Apreendidos” (tib.: gzung ba) ou “que apreende” (‘dzin pa) se referem à fixação que dá realidade àquilo que não tem.
6 Este é um dos significados da palavra “fenômeno” (dharma) em sânscrito.
7 Algo já existente não precisa de um surgimento. E um surgimento no passado não tem sentido pois, já que isso surge si, ele precisa já estar presente — então não há surgimento.
8 Essa “outra” causa só vai existir se houver um resultado. Se já há um resultado, não é preciso nenhum surgimento ou causa. Uma outra maneira de explicar isso, conforme um argumento Madhyamaka, é: causa e resultado precisam ter uma relação. Se a causa estiver separada do resultado, sendo uma “outra” coisa, então não há ligação. Consequentemente, uma “outra coisa” não pode ser a causa de algo.
9 Se o resultado existe (inerentemente, ou seja, de forma independente) ao mesmo tempo que a causa, então ele não depende dela, não havendo nenhuma relação causal.
10 Se não há direções, não há dimensão espacial e tudo seria essa entidade sem espaço.
11 Assim como chifres de fogo ou uma árvore visualizada (estas notas, de 1 a 5, estão no original tibetano_).
12 Devido ao poder de causas e condições.
13 Devido ao poder da habituação.
14 Para os seis tipos de seres migrantes.
15 Nas tradições Pratyekabuda e Tchitamatra (Mente Apenas).
16 Como já demonstrado antes, se uma única entidade não existe, é impossível que haja um conjunto dessas entidades.
17 Logicamente, ele precisa ter um começo e também um meio (o momento posterior ao início e anterior ao fim).
18 Para a percepção do mundo exterior existir de fato, ela precisa ser singular. Caso esteja dividida em múltiplos instantes, ela é apenas um conjunto de outros processos, ou seja, não tem existência inerente.
19 Todos os fenômenos são primordialmente não nascidos (estas notas, de 1 a 4, estão no original tibetano).
20 Eternalismo e niilismo.
21 Da existência cíclica.
22 Os extremos do eternalismo e niilismo.
23 Se ele não tem nem a sutil realidade de algo que é considerado irreal, também não tem uma realidade mais óbvia.
24 “Estado natural” não se refere à condição comum de distrações e aflições; mas, sim, à natureza da mente.
25 Essas práticas requerem instruções orais. Mahamudra é a principal prática para o reconhecimento da natureza da mente e dos fenômenos, na linhagem de Gampopa.
26 “Qualidade daquilo que é” (tib.: de kho na nyid) às vezes é traduzido como “talidade” (“suchness”, em inglês). “Aquilo que é” é a realidade absoluta inefável e inexprimível, por isso é referida como “aquilo”, em vez de uma palavra que reduziria seu significado. Como ela não é um vazio, possui uma “qualidade”. Em outras passagens desta tradução, esse termo aparece como “tal qualidade”, que é uma tradução literal do tibetano.
27 Nomes dos principais budas.
28 “Oferenda ao fogo” (homa; sbyin sreg) é uma etapa crucial que conclui um retiro tradicional vajrayana.
29 É por isso que pode ser dito que tal samadhi envolve paciência e diligência.
30 “Apego a esta vida” é uma expressão comum que significa fixação em objetivos materiais e egoístas.